Quando é que decidimos que não vamos mais compactuar com a violência e a humilhação que nos são infligidas? Como é que o risco deixa de ser um bloqueio à tomada de decisão e ação que se impõe? Onde é que aquilo que temos medo de perder se torna justamente naquilo que temos de abandonar para que outra coisa surja? Um dia acordamos com um sabor diferente na boca. Foram precisos muitos dias até chegar a esse, mas não poderia ter sido mais cedo. Não chegamos aqui sozinhas nem por nenhuma iluminação isolada. Cada decisão é um passo no sentido de um caminho que já se estava a fazer, mesmo quando a decisão é voltar para trás. Mas há decisões que ganham um peso maior do que o conjunto de decisões que tomámos até que essas se abram como hipóteses. Não há decisão que se tome que fique tomada. É preciso continuar a decidir e a cuidar da decisão, à luz das suas consequências. E é preciso coragem para nos lançarmos num caminho que ainda não experimentámos, cujas consequências não conseguimos ainda prever na sua totalidade. Aquilo que podemos talvez conhecer melhor são as consequências de não fazer de outra forma, deixar que decidam por nós quando chegar o momento. De onde nasce a coragem?
Eu pensei que queria escrever sobre a coragem, mas afinal ainda é sobre o medo. Que a coragem não é apenas uma emoção em si mas uma forma de lidar com o medo e com o mundo. Que, no limite, ela é uma escolha perante a situação em que nos encontramos, quando já não somos capazes de olhar para o lado, de evitar ver, de evitar tomar lugar. Que ela dá forma ao medo tornando-se decisão, tantas vezes a consequência de um copo que encheu demasiado e precisa de transbordar. Nesse sentido, é como se a emoção/decisão nos tomasse a nós e nos fizesse agentes da sua necessidade. Percebi então que o que eu quero mesmo é falar sobre o cuidado enquanto modo de atenção e de operar que nos regula e nos ampara no espaço entre estes pólos de emoção e ação aparentemente incompatíveis. Pólos esses que, de resto, insistem em encabeçar as duas pontas de um espectro que construímos, como quase tudo, a partir de estruturas duais e dicotómicas. A dissociação diária que fazemos para nos tentarmos libertar das contradições que nos atravessam é tanto um sintoma de uma certa forma de estar que nos é imposta quotidianamente, há muito tempo, quanto um mecanismo de defesa e sobrevivência que aprendemos a efectivar para não sermos esmagadas. O que não faltam são remédios que reproduzem a doença que pretendem curar, sobretudo quando a razão pela qual temos de ser curadas é justamente a causa do que nos adoece.
Tudo isto para dizer que o modo como tentamos caber numa certa forma e (con)ter-nos nela tem tudo a ver com uma incapacidade estrutural para cuidar de tudo aquilo que somos e sentimos, sobretudo quando tudo isso se expressa através de emoções que catalogamos como contraditórias e mesmo auto-excludentes, ainda que a experiência de as sentir nos dê provas de que elas coexistem em nós, nos nossos corpos, muitas vezes ao mesmo tempo. Essa incapacidade estrutural é, simultaneamente, aquilo que nos integra com mais facilidade num sistema de morte que tende a valorizar um dos pólos do espectro em prol do outro, separando as emoções em desejáveis e indesejáveis, certas ou erradas, segundo uma determinada hierarquização, mais ou menos dinâmica. Pior que isso, um sistema que transforma emoções e modos de sentir em propriedades pessoais, que as totaliza em modos de ser. Dentro deste sistema, parece não haver nuance entre dizer que alguém tem medo, está com medo ou é medrosa – na pior das hipóteses, que ela é cobarde, quando esse medo é tal que veda de todo a possibilidade de se sair dele. Da mesma forma que, neste sistema, é difícil conceber que uma pessoa medrosa seja também corajosa. Uma destas será a excepção à regra, e assim vamos cabendo no molde e (con)tendo coisas que, ao invés de nos atravessarem, se tornam parte de nós.
Quando não cuidamos do espaço que as emoções abrem em nós, calcificamo-las em totalizações que originam padrões de comportamento em relação aos quais temos de estar preparadas para ser responsabilizadas, ainda que saibamos que, justamente por se automatizarem, dificilmente os conseguimos controlar. Uma dicotomia de fundo ajuda a montar esta dificuldade, quando acreditamos que às emoções incontroláveis impomos o domínio do pensamento cristalino, a razão que tudo organiza e coloca no seu lugar, como se a cabeça fosse de facto uma parte do corpo separada dele. Quando somos levadas a agir pelas emoções, dizemos que agimos "sem pensar", e não há melhor mecanismo de desresponsabilização do que este para as pessoas que não sabem sentir. O problema é que não aprendemos a sentir. E essa aprendizagem faz-se mais através do cuidado do que através do controlo. Não existe nada de natural no modo como sentimos. Séculos e séculos de controlo patriarcal e colonial do pensamento hegemónico forjaram seres sensíveis separados do seu corpo e entre si, sujeitos amputados prontos a dominar ou a ser dominados. Este projeto não se faria, claro, sem a destruição contínua da esfera do cuidado enquanto espaço comum, tanto quanto sem a divisão de papéis de género que a acompanha.
Conscientes de que existe uma diferenciação entre sentir e pensar, ainda que ambos sejam atualmente catalogados como operações cognitivas, organizamos e reproduzimos essa diferença segundo uma espécie de sequência temporal, a partir da qual é normal pensar no que sentimos mas menos comum sentir o que pensamos, por exemplo. Como se o exercício da abstração e da interpretação só pudesse acontecer depois de já termos sentido o que foi sentido, encerrando assim as emoções que sentimos nas narrativas que procuram contê-las. Desta forma, são as narrativas e interpretações que produzimos a partir de determinada experiência emocional que podemos reconfigurar, mas quase nunca fazemos o exercício (se a isso não nos incentivarem) de (re)convocar a emoção ao corpo para reabrir e reprocessar aquilo que ficou fechado nessas várias investidas de a racionalizar. Poderíamos desdobrar este modo de organização em milhares de exemplos, e nenhum deles escaparia à redoma totalizante que nos afasta de um lugar que põe em causa quase tudo aquilo que acreditamos saber, e do qual ainda precisamos para pisar este chão que pisamos sem perder os contornos — coisa que nos apavora.
Uma das coisas que nos pode surpreender quando aprendemos a sentir é que o nosso corpo-mente tem o seu modo próprio de organizar as emoções e de criar os seus próprios espectros emocionais, os seus próprios mapas relacionais, muitas vezes em ruptura com as estruturas pré-concebidas que temos sobre elas. Um dia – ou melhor, do conjunto de todos os dias até esse — encontrei-me com a seguinte ferramenta: aprender a sentir medo ensina-me a sentir prazer. Essa aprendizagem não me libertou do medo nem tão pouco produziu uma certeza que, desde então, se tenha mantido firme enquanto tal. Aprender a sentir uma determinada emoção, isto é, aprender a ser atravessadas por ela quando ela se insinua, e enquanto a atravessamos; deixar o nosso corpo hospedá-la sem coincidirmos com ela, abre um canal de escuta que normalmente está impedido. Mais do que aprender a controlar esta ou aquela emoção específica, precisamos de aprender a cuidar desse canal de escuta. Às vezes, achamos que estamos a sentir uma coisa, e quando nos pomos a escutá-la através do corpo, ela transforma-se noutra, e muda de sítio. Passa da garganta para a barriga ou para as pernas, altera-se o seu peso, a sua textura. Tem o seu próprio tempo, a sua cadência.
Tudo isto se complica quando constatamos que aquilo que sentimos, o modo como sentimos e o modo como expressamos aquilo que sentimos não nos afeta apenas a nós, mas existe no espaço que partilhamos com os outros, cria relação. Nesse sentido, cuidar do que sentimos é já, desde logo, cuidar das relações e dos vínculos que são a interface das nossas emoções e afetos. Num sistema que forma seres para controlar e seres para cuidar segundo uma divisão extremamente marcada pela diferença de sexo/género, dito de uma maneira muito simplista que se desdobra em muitas outras expressões, temos um problema sistémico de desresponsabilização masculina pelo trabalho do cuidado, que, no mesmo movimento, sobrecarrega as mulheres com o papel de cuidadoras. Este desequilíbrio manifesta-se de múltiplas formas, mas é nas relações íntimas que provavelmente se torna mais difuso e, simultaneamente, mais latente. É claro que (1) há exceções; e (2) assumir/reproduzir o papel de cuidadora também envolve processos de desresponsabilização quando não é ativamente questionado. Mas para isso é preciso ter ferramentas; e é preciso comunizá-las, especialmente numa realidade em que a "terapia" continua a ser (vista como) um privilégio de classe.
Corpos treinados para cuidar dos outros esquecem-se muitas vezes de si, abandonam-se, e é nesse abandono que se perdem. Corpos treinados para esperar que sejam os outros a cuidar deles tornam-se co-dependentes e incapazes de reciprocidade. Conhecemos demasiado bem esta dinâmica para ignorarmos as consequências que ela produz e reproduz. No sentido em que o cuidado é um modo de atenção que pode ser, ou não, desenvolvido, muitas vezes por necessidade e não tanto a partir de uma escolha, ao invés de uma tendência natural para querer saber ("to care", em inglês, sinaliza este duplo sentido), há trabalho a fazer. Um trabalho que passa pela desconstrução, tanto quanto pela (re)configuração constante de limites. É o corpo que aprendeu a sentir que vai fazer esse trabalho, "automatizando" uma nova forma de operar, ou seja, inaugurando um modo de atenção que deixa de ser relegado para certas pessoas específicas, e se torna ferramenta partilhada de cada relação. Em termos práticos, não se trata de um caminho linear, mas de um processo multidimensional baseado na capacidade de intensificar o nosso vínculo com a situação em que nos encontramos, com as pessoas que fazem parte dela, com maior ou menor distância, e connosco.
Dessa intensidade nasce uma clareza sobre o que é preciso fazer, a cada momento, mesmo quando não somos capazes de prever os seus efeitos, e mesmo que ela não seja imediata. Aprender a sentir e a escutar o corpo — o nosso corpo e o corpo relacional de que fazemos parte — prepara-nos ainda para lidar com o que não podemos antecipar, por muito paradoxal que pareça. Dessa intensidade nasce também uma força que se pode transformar na coragem de construir mundo(s) juntas, e numa prática oleada de cuidar das decisões (e des-cisões) que nos abrem caminho.