07/10/2025

✹ aprender a sentir, ensinar o corpo a cuidar

Quando é que decidimos que não vamos mais compactuar com a violência e a humilhação que nos são infligidas? Como é que o risco deixa de ser um bloqueio à tomada de decisão e ação que se impõe? Onde é que aquilo que temos medo de perder se torna justamente naquilo que temos de abandonar para que outra coisa surja? Um dia acordamos com um sabor diferente na boca. Foram precisos muitos dias até chegar a esse, mas não poderia ter sido mais cedo. Não chegamos aqui sozinhas nem por nenhuma iluminação isolada. Cada decisão é um passo no sentido de um caminho que já se estava a fazer, mesmo quando a decisão é voltar para trás. Mas há decisões que ganham um peso maior do que o conjunto de decisões que tomámos até que essas se abram como hipóteses. Não há decisão que se tome que fique tomada. É preciso continuar a decidir e a cuidar da decisão, à luz das suas consequências. E é preciso coragem para nos lançarmos num caminho que ainda não experimentámos, cujas consequências não conseguimos ainda prever na sua totalidade. Aquilo que podemos talvez conhecer melhor são as consequências de não fazer de outra forma, deixar que decidam por nós quando chegar o momento. De onde nasce a coragem?

Eu pensei que queria escrever sobre a coragem, mas afinal ainda é sobre o medo. Que a coragem não é apenas uma emoção em si mas uma forma de lidar com o medo e com o mundo. Que, no limite, ela é uma escolha perante a situação em que nos encontramos, quando já não somos capazes de olhar para o lado, de evitar ver, de evitar tomar lugar. Que ela dá forma ao medo tornando-se decisão, tantas vezes a consequência de um copo que encheu demasiado e precisa de transbordar. Nesse sentido, é como se a emoção/decisão nos tomasse a nós e nos fizesse agentes da sua necessidade. Percebi então que o que eu quero mesmo é falar sobre o cuidado enquanto modo de atenção e de operar que nos regula e nos ampara no espaço entre estes pólos de emoção e ação aparentemente incompatíveis. Pólos esses que, de resto, insistem em encabeçar as duas pontas de um espectro que construímos, como quase tudo, a partir de estruturas duais e dicotómicas. A dissociação diária que fazemos para nos tentarmos libertar das contradições que nos atravessam é tanto um sintoma de uma certa forma de estar que nos é imposta quotidianamente, há muito tempo, quanto um mecanismo de defesa e sobrevivência que aprendemos a efectivar para não sermos esmagadas. O que não faltam são remédios que reproduzem a doença que pretendem curar, sobretudo quando a razão pela qual temos de ser curadas é justamente a causa do que nos adoece.

Tudo isto para dizer que o modo como tentamos caber numa certa forma e (con)ter-nos nela tem tudo a ver com uma incapacidade estrutural para cuidar de tudo aquilo que somos e sentimos, sobretudo quando tudo isso se expressa através de emoções que catalogamos como contraditórias e mesmo auto-excludentes, ainda que a experiência de as sentir nos dê provas de que elas coexistem em nós, nos nossos corpos, muitas vezes ao mesmo tempo. Essa incapacidade estrutural é, simultaneamente, aquilo que nos integra com mais facilidade num sistema de morte que tende a valorizar um dos pólos do espectro em prol do outro, separando as emoções em desejáveis e indesejáveis, certas ou erradas, segundo uma determinada hierarquização, mais ou menos dinâmica. Pior que isso, um sistema que transforma emoções e modos de sentir em propriedades pessoais, que as totaliza em modos de ser. Dentro deste sistema, parece não haver nuance entre dizer que alguém tem medo, está com medo ou é medrosa – na pior das hipóteses, que ela é cobarde, quando esse medo é tal que veda de todo a possibilidade de se sair dele. Da mesma forma que, neste sistema, é difícil conceber que uma pessoa medrosa seja também corajosa. Uma destas será a excepção à regra, e assim vamos cabendo no molde e (con)tendo coisas que, ao invés de nos atravessarem, se tornam parte de nós. 

Quando não cuidamos do espaço que as emoções abrem em nós, calcificamo-las em totalizações que originam padrões de comportamento em relação aos quais temos de estar preparadas para ser responsabilizadas, ainda que saibamos que, justamente por se automatizarem, dificilmente os conseguimos controlar. Uma dicotomia de fundo ajuda a montar esta dificuldade, quando acreditamos que às emoções incontroláveis impomos o domínio do pensamento cristalino, a razão que tudo organiza e coloca no seu lugar, como se a cabeça fosse de facto uma parte do corpo separada dele. Quando somos levadas a agir pelas emoções, dizemos que agimos "sem pensar", e não há melhor mecanismo de desresponsabilização do que este para as pessoas que não sabem sentir. O problema é que não aprendemos a sentir. E essa aprendizagem faz-se mais através do cuidado do que através do controlo. Não existe nada de natural no modo como sentimos. Séculos e séculos de controlo patriarcal e colonial do pensamento hegemónico forjaram seres sensíveis separados do seu corpo e entre si, sujeitos amputados prontos a dominar ou a ser dominados. Este projeto não se faria, claro, sem a destruição contínua da esfera do cuidado enquanto espaço comum, tanto quanto sem a divisão de papéis de género que a acompanha.

Conscientes de que existe uma diferenciação entre sentir e pensar, ainda que ambos sejam atualmente catalogados como operações cognitivas, organizamos e reproduzimos essa diferença segundo uma espécie de sequência temporal, a partir da qual é normal pensar no que sentimos mas menos comum sentir o que pensamos, por exemplo. Como se o exercício da abstração e da interpretação só pudesse acontecer depois de já termos sentido o que foi sentido, encerrando assim as emoções que sentimos nas narrativas que procuram contê-las. Desta forma, são as narrativas e interpretações que produzimos a partir de determinada experiência emocional que podemos reconfigurar, mas quase nunca fazemos o exercício (se a isso não nos incentivarem) de (re)convocar a emoção ao corpo para reabrir e reprocessar aquilo que ficou fechado nessas várias investidas de a racionalizar. Poderíamos desdobrar este modo de organização em milhares de exemplos, e nenhum deles escaparia à redoma totalizante que nos afasta de um lugar que põe em causa quase tudo aquilo que acreditamos saber, e do qual ainda precisamos para pisar este chão que pisamos sem perder os contornos — coisa que nos apavora.

Uma das coisas que nos pode surpreender quando aprendemos a sentir é que o nosso corpo-mente tem o seu modo próprio de organizar as emoções e de criar os seus próprios espectros emocionais, os seus próprios mapas relacionais, muitas vezes em ruptura com as estruturas pré-concebidas que temos sobre elas. Um dia – ou melhor, do conjunto de todos os dias até esse — encontrei-me com a seguinte ferramenta: aprender a sentir medo ensina-me a sentir prazer. Essa aprendizagem não me libertou do medo nem tão pouco produziu uma certeza que, desde então, se tenha mantido firme enquanto tal. Aprender a sentir uma determinada emoção, isto é, aprender a ser atravessadas por ela quando ela se insinua, e enquanto a atravessamos; deixar o nosso corpo hospedá-la sem coincidirmos com ela, abre um canal de escuta que normalmente está impedido. Mais do que aprender a controlar esta ou aquela emoção específica, precisamos de aprender a cuidar desse canal de escuta. Às vezes, achamos que estamos a sentir uma coisa, e quando nos pomos a escutá-la através do corpo, ela transforma-se noutra, e muda de sítio. Passa da garganta para a barriga ou para as pernas, altera-se o seu peso, a sua textura. Tem o seu próprio tempo, a sua cadência.

Tudo isto se complica quando constatamos que aquilo que sentimos, o modo como sentimos e o modo como expressamos aquilo que sentimos não nos afeta apenas a nós, mas existe no espaço que partilhamos com os outros, cria relação. Nesse sentido, cuidar do que sentimos é já, desde logo, cuidar das relações e dos vínculos que são a interface das nossas emoções e afetos. Num sistema que forma seres para controlar e seres para cuidar segundo uma divisão extremamente marcada pela diferença de sexo/género, dito de uma maneira muito simplista que se desdobra em muitas outras expressões, temos um problema sistémico de desresponsabilização masculina pelo trabalho do cuidado, que, no mesmo movimento, sobrecarrega as mulheres com o papel de cuidadoras. Este desequilíbrio manifesta-se de múltiplas formas, mas é nas relações íntimas que provavelmente se torna mais difuso e, simultaneamente, mais latente. É claro que (1) há exceções; e (2) assumir/reproduzir o papel de cuidadora também envolve processos de desresponsabilização quando não é ativamente questionado. Mas para isso é preciso ter ferramentas; e é preciso comunizá-las, especialmente numa realidade em que a "terapia" continua a ser (vista como) um privilégio de classe.

Corpos treinados para cuidar dos outros esquecem-se muitas vezes de si, abandonam-se, e é nesse abandono que se perdem. Corpos treinados para esperar que sejam os outros a cuidar deles tornam-se co-dependentes e incapazes de reciprocidade. Conhecemos demasiado bem esta dinâmica para ignorarmos as consequências que ela produz e reproduz. No sentido em que o cuidado é um modo de atenção que pode ser, ou não, desenvolvido, muitas vezes por necessidade e não tanto a partir de uma escolha, ao invés de uma tendência natural para querer saber ("to care", em inglês, sinaliza este duplo sentido), há trabalho a fazer. Um trabalho que passa pela desconstrução, tanto quanto pela (re)configuração constante de limites. É o corpo que aprendeu a sentir que vai fazer esse trabalho, "automatizando" uma nova forma de operar, ou seja, inaugurando um modo de atenção que deixa de ser relegado para certas pessoas específicas, e se torna ferramenta partilhada de cada relação. Em termos práticos, não se trata de um caminho linear, mas de um processo multidimensional baseado na capacidade de intensificar o nosso vínculo com a situação em que nos encontramos, com as pessoas que fazem parte dela, com maior ou menor distância, e connosco.

Dessa intensidade nasce uma clareza sobre o que é preciso fazer, a cada momento, mesmo quando não somos capazes de prever os seus efeitos, e mesmo que ela não seja imediata. Aprender a sentir e a escutar o corpo — o nosso corpo e o corpo relacional de que fazemos parte — prepara-nos ainda para lidar com o que não podemos antecipar, por muito paradoxal que pareça. Dessa intensidade nasce também uma força que se pode transformar na coragem de construir mundo(s) juntas, e numa prática oleada de cuidar das decisões (e des-cisões) que nos abrem caminho.

18/07/2025

✿ abrir os olhos e queimar as mãos



Bairro do Talude, Loures. Julho de 2025

Harun Farocki começa o seu ensaio visual Fogo Inextinguível (1969) por ler em voz alta o testemunho de um camponês vietnamita no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, em Estocolmo, onde este relata o momento em que uma bomba de napalm explodiu perto de si, tendo queimado grande parte do seu corpo e a casa onde habitava, deixando-o inconsciente durante 13 dias. Farocki recorre a esse depoimento para nos confrontar em seguida com a aporia do pensamento e da imagem: “Se te mostrarmos imagens dos danos de napalm, tu vais fechar os olhos. Primeiro fecharás os olhos às imagens. Depois fecharás os olhos à memória. Depois fecharás os olhos aos factos. Depois fecharás os olhos à conexão entre eles.”

Enquanto gesto inaugural de uma destabilização do nosso aparato perceptivo, abrir os olhos pode representar desde logo uma acção que tem muito pouco de natural ou automático, que não devém sequer de um comportamento intuitivo e que, nesse sentido, não pode ser lido como algo que acontece, mas como algo que se faz. Como abrir os teus olhos? – perguntava em tom provocatório Didi-Huberman no enunciado crítico de um ensaio. Aquilo que a importância de abrir os olhos em primeira instância assinala é a sua dimensão processual, isto é, o facto de esse gesto se impor por uma necessidade activa de rebater um estado precedente (e em certa medida prevalecente) em que os olhos não estão abertos.

Da mesma maneira, fechar os olhos também nem sempre é apenas uma reflexo natural e inescapável, como aquele que acontece quando adormecemos cansados. Fechar os olhos é muitas vezes um recurso a que recorremos, e a que corresponde uma mecânica própria infectada por modos de afectação que condensam em si o correlato histórico, social e cultural das formas de sensibilidade específicas assimiladas em função do contexto de quem olha. Se aprendemos que é natural fechar os olhos para nos protegermos de algo que fere a susceptibilidade de um sistema de crenças e de modos de sentir ou entender, então a ideia de manter insubordinadamente os olhos abertos diante de uma circunstância particular que nos induz a fechá-los torna-se um gesto de vinculação que faz algo mais do que simplesmente superar o medo.



Steve Mcqueen, excerto de Deadpan (1997)

Abrir os olhos diante da imagem que nos enlaça é abrir espaço para resgatar o olhar, criando condições para que ela, no âmbito da sua existência viva e processual, nos queime a vista ao desfazer a percepção que tínhamos antes de ela se impor diante de nós. Quase como se aquilo que é gerado obedecesse a um processo de calcinação de tal ordem em que as convenções que demarcam o lugar a partir do qual lançamos o olhar aquecem a uma tal temperatura que nos restam somente as raízes e as coisas que vamos respigando do chão - aquelas que nos remetem a um espaço comum, que levamos da rua para casa para comer ou para a construir, e que surpreendem o fundo relacional de que somos fruto.

Pôr as mãos no fogo. Didi-Huberman encontra nesta expressão a imagem derradeira que torna consequente o acto de abrir os olhos. No âmbito do seu uso discursivo, a imagem de pôr as mãos no fogo procura sacar o gesto de vinculação em que alguém se compromete com uma dada realidade ao implicar-se nos conteúdos dela. É o gesto da radicalização de que o nosso engajamento talvez precise, no sentido em que o desdobra para lá do crer ou do dizerPôr as mãos no fogo serviria para nos lembrarmos que o fogo é inextinguível, mesmo (ou sobretudo) quando fechamos os olhos a ele.

Se admitimos que nos nossos modos de olhar se inscreve uma certa relação com o tempo e o espaço, então aquilo que deve ser colocado debaixo da lente é também a malha dessa mesma relação. Se as imagens não são apenas representações passivas, mas agentes activos que nos olham, assustam e interpelam, o gesto de abrir os olhos diante delas implica por isso desenvolver uma postura crítica em cujo espaço de afectação se interpelem também os modos dominantes de olhar. Assim, quando dizemos que é preciso abrir os olhos às imagens que queimam, não apontamos a um suposto dever de denúncia (“quem denuncia, isenta-se”, como lemos e ouvimos na Convocação), mas antes à necessidade de nos implicarmos na realidade processual e relacional que produz essas mesmas imagens, e que, ao fim do dia, nos intima.

Diante do medo, o enlace que nos lança o corpo ao caminho talvez seja aquele que compreende primeiro que tudo o ancoramento ao mundo comum do qual nos separámos, e não tanto a vertigem do nosso desassombro.

Queimar as mãos funcionaria assim como um gesto de implodir com a condição fixada de quem olha e que, numa espécie de carreira de tiro, dispara uma atenção redentora, caridosa ou revoltada para as imagens e representações desse mundo. É firmar o compromisso medular com aquilo que nos rodeia, com as chapas de zinco trituradas na boca de um bulldozer, e com tudo o que nos cai dos bolsos. Tudo o que era da gente antes da gente se atomizar em pedacinhos.

11/07/2025

✹ canção a medo

 

 

Não, não vou eu tenho medo
De chorar por este amor
Por este amor

Era seguir os teus passos
E fugir do meu caminho
Era cair nos teus braços
Pra morrer bem mais sozinho

Não, não vou eu tenho medo
De sofrer por este amor
Por este amor

Era perder o meu pouco
Sem saber se vou ou venho
Era o acabar mais louco
Do que o louco amor que eu tenho

Não, não vou eu tenho medo
De morrer de tanto amor
De tanto amor


09/07/2025

✦ ✧ algumas reflexões sobre o "estado" do medo

 


(contexto)

No dia 15 de junho de 2025, foi convocada uma mobilização, a nível nacional, sob o mote "Não queremos viver num país do medo". Em Lisboa, a concentração juntou muitas centenas de pessoas em frente ao Teatro da Barraca.
Num breve texto publicado por B.G. (aqui), o enquadramento:



        









(...)


Entre algumas das reivindicações da mobilização, contavam-se: (1) o fim da impunidade dos grupos violentos de extrema-direita; (2) o reforço da atenção e vigilância a estes grupos por parte das autoridades competentes; (3) a divulgação imediata do capítulo omitido do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) sobre a extrema-direita.




por falar em medo (F.)


"Todas percebemos o que significa, neste momento, apelar a que o medo não se torne a emoção dominante e petrificadora perante o atual estado de coisas e, em particular, os recentes episódios de agressões de grupos de extrema-direita, cuja violência se vê como cada vez mais legitimada. Mas talvez fosse pertinente questionar o medo como foco de uma demanda de mobilização geral contra o racismo, a xenofobia (e outros ismos) que, longe de serem características excecionais destes grupos, fazem parte do aparato institucional a que, ironicamente, se apela. Se sabemos do que estamos a falar quando falamos em violência sistémica, percebemos que os órgãos estatais, legais e policiais a que nos dirigimos quando reivindicamos a criminalização e a punição destes grupos, são, na verdade, agentes responsáveis na sua normalização – e assim também não nos deveria espantar que haja até uma confluência de indivíduos entre uns e outros. 

Será que exigir ao Estado que se posicione e intervenha contra esta violência terá um resultado diferente daquele que é já o seu modus operandi, a sua receita em tempos intempestivos: mais controlo, mais vigilância e mais policiamento? Não haverá milagres, nem será por magia que, de repente, as mesmas instituições criadas para proteger uma determinada ordem, uma determinada hierarquia, uma determinada relação de poderes – sendo ela classista, colonialista e patriarcal até ao tutano – vão começar a agir a favor dos interesses de quem está, realmente, nas posições mais vulneráveis à violência destes grupos na sociedade. Isto é evidente na instantânea equiparação dos “extremos” que sucede nestas situações, por parte de figuras com visibilidade mediática, completamente alucinadas, e muitas vezes sem qualquer contraditório.

Por outro lado, pensemos em conjunto: a nível retórico, não será o foco na questão do medo, desde logo, e nos termos em que ela é invocada, um rótulo de passividade espectacular? “Não queremos viver num país do medo” é uma constatação evidente que não nos desafia a nada mais do que a ter um posicionamento – e, ainda por cima, bastante vago. E não é que não seja importante que esse posicionamento se faça e se dê a conhecer de algum modo, mas não seria agora um bom momento para pôr em causa o alcance deste tipo de frases vagamente unificadoras, altamente descomprometidas e, acima de tudo, sem qualquer tipo de chamada à ação concreta que não aquela que reafirma a sua confiança nas instituições do sistema? 

Mantendo até o mesmo tipo de frase, poderemos pensar que diferença faria se o foco estivesse naquilo que queremos em vez de ser naquilo que não queremos? Num posicionamento afirmativo, ao invés de num posicionamento defensivo? Na coragem de que precisamos em vez de no medo que nos assola? Talvez aí se revelasse a necessidade de antagonizar a resistência, de entender realmente que barcos existem e que não, não estamos todas no mesmo barco… Que negar isso, na fé de uma união frentista antifascista, é adiar um embate que provavelmente se tornará inadiável, e para o qual estaremos menos preparadas quanto menos nos predispusermos a enfrentar a falência de um posicionamento defensivo, pacificador e legalista.

Não escrevo com certezas absolutas de nada, reafirmando sempre que me parece estar tudo por fazer e ainda por desfazer, neste limbo constante entre ir fazendo e pensar no que pode ser feito – coisas que acontecem a par e passo e que nos exigem força, espírito crítico, e capacidade de aprender com o passado histórico e recente, desenterrando conhecimento que nos tem sido negado, ao mesmo tempo que precisamos de desaprender tanta coisa. Parece-me, porém, que uma postura que se assume na base da negação (fator indispensável a uma ação de denúncia e reivindicação de algo que se quer contrariar, rebater, contra-atacar), mas que o faz dirigindo-se ao "poder político", não tem como não morrer na praia quando se fica por aí.

Que temos de ocupar as ruas, isso é certo. Mas continuar a fazê-lo nos parâmetros em que tem sido feito, à espera que a mudança venha de cima, contribui para prolongar uma desresponsabilização coletiva sob a ilusão de que o protesto às autoridades é suficiente. 


Como qualquer emoção, o medo tem uma função cognitiva de situar o nosso corpo num determinado ambiente e influenciar o modo como nos iremos movimentar nele. Lido à letra, “viver sem medo” – isto é, erradicar o medo das nossas vidas – seria como viver sem o botão psíquico e somático que se ativa quando somos confrontadas com a perceção de perigo ou insegurança.

Nesse sentido, precisamos, de facto, do medo. De saber senti-lo e de processar aquilo que nos está a mostrar, até se transformar noutra coisa. O modo como o nosso corpo responde ao medo não é igual para toda a gente nem em todas as situações. Se o medo pode ter um efeito paralisante, também pode ser a emoção que nos leva a evitar ou a fugir de uma situação potencialmente perigosa ou a gritar por socorro, a identificar o que nos assusta e como podemos sair dali em direção a um lugar seguro. Que lugar seguro será esse? A resposta não é igual para todas.

Cada vez sinto mais que, para contrariar a lógica binária no que diz respeito às emoções e à sua catalogação em positivo versus negativo, se é realmente a liberdade que nos interessa (mais uma vez, a liberdade de quem?), não é grande estratégia tentar criar um sapato que caiba a todas, quando nessa ambição universalista caímos justamente na totalização. E que falar de liberdade é menos útil do que falar em libertação, no que a isso diz respeito. Mas o comum existe. No leque das emoções que, provavelmente, estaremos a sentir coletivamente, o medo é, sem dúvida, uma delas, e com razão. Assim, trabalhar (com) a energia do medo e treinar o nosso corpo para identificar e sentir medo neste momento é importante.

Rastrear aquilo que mais nos assusta e observar as formas que o medo assume no nosso dia-a-dia. Perceber as diferenças entre os diferentes medos que sentimos, os seus tamanhos e efeitos, de onde vêm, e a sua correspondência com o nível das ameaças reais que enfrentamos e aquelas que são geradas em torno de percepções mais abstratas. Encontrar canais criativos para a sua expressão. Constatar como o medo é instrumentalizado pelo poder, aqui e em toda a parte. Procurar conhecer o(s) medo(s) dos outros, naquilo em que são parecidos e naquilo em que são distintos. Criar espaços e disponibilizar instâncias em que nos sentimos seguras e onde podemos ser acolhidas e acolher outras pessoas que também estão a senti-lo. Ou, pelo contrário, conhecendo melhor os medos dos nossos inimigos, identificar, por extensão, as suas fraquezas. Desenvolver e partilhar práticas e táticas de auto-defesa e auto-proteção, a nível individual e coletivo. 

O medo é uma emoção útil em muitas circunstâncias, inclusive agora, mas é capaz de não ser o melhor outlet para uma mobilização política de revolta e tomada de ação pública em reação àquilo que está em causa. O medo não é uma emoção propícia a um estado de espírito revolucionário, porque leva o nosso corpo a procurar a segurança e a apaziguação, o conforto e a conciliação. E honestamente, essa procura fica muito aquém daquilo que precisamos de levar para a rua neste momento. Ou seja, por um lado, isto poderia ser algo que corrobora a premissa do “não querermos viver com medo”. Por outro lado, o que estou a dizer é que não basta dizer que não queremos viver com medo – aceitando já que é sobre a rejeição dessa emoção (instalada) que operamos. 

Embora, dentro do contexto, o apelo convoque a pressuposição de outras emoções quando invocado na forma negativa – indignação, frustração, ansiedade, preocupação, entre outras – não deixa de dar destaque a todo um espectro que opera sobretudo no âmbito emocional da fragilidade – impotência, desamparo, insegurança, exposição/rejeição. É nesta premissa que facilmente resvalamos para um discurso que fantasia com uma resposta securitária, sobretudo se nos estamos a dirigir aos aparelhos institucionais. Porque não a raiva? O ódio à injustiça? Porque temos medo de assumir realmente uma frente de combate?

Mas além disso, voltando à questão dos inimigos, urge convocar uma reflexão um pouco mais exigente sobre as dinâmicas de subjetivação em jogo nestes apelos unificadores, para chegar à conclusão de que as emoções não são o melhor ponto de entrada neste tipo de convocatórias, nem tão pouco nos servirá um humanismo lato que se esquiva ao antagonismo que possa fazer frente à opressão cada vez mais latente, e nos sirva na constituição de uma luta contra a escalada do fascismo. Estes grupos de extrema direita não são uma anomalia do sistema, mas uma expressão impecável dos vários pilares que sustentam aquilo que o capitalismo está desenhado para produzir e reproduzir.

Por fim, ainda muito poderia ser dito sobre a perspetiva patriótica que o apelo assume no destaque ao “país” como lugar onde não queremos viver com medo… Independentemente de se estar a reagir a algo que está a acontecer em Portugal, sabemos bem que estamos perante um cenário que, apesar das suas variantes geográficas, só pode ser devidamente compreendido (e combatido) de uma perspetiva internacionalista, no derrubar de uma visão fronteirista e na construção de uma solidariedade que terá de se erguer contra o poder e não com ele."


do medo ao vínculo
(A.)


"O monstro está aí, em marcha. Apresenta-se a horas certas e afirma seguir o normal funcionamento das instituições. Surge de gravata e barba aparada na televisão, ocupando esse grande circo denominado “casa da democracia”. Outras vezes aparece como batalhão – esporádico, mas ruidoso –, em concentrações em datas simbólicas ou em ataques no meio da rua.

Mas também veste outras roupagens. Infiltra-se num quotidiano que nos tentam vender enquanto normalidade – e que mais não é do que a continuação da guerra por outros meios. 

Encontra-se na distância que se mantém em relação àqueles que nos trazem um pedido à mesa (ou a casa); na cancela que apenas se abre através de cartão contactless – se não se saltar sobre ela... –; na bófia que nos manda circular pois "aqui não há nada para ver"; na distinção que se compra e se faz questão de levar na lapela; ou no olhar desviado diante da incógnita que a outra carrega em si. 

Este processo não surgiu de repente. A domesticação e administração da vida instauram, há muito, a separação e a impotência como modo de vida, onde o medo se torna afeto estrutural. Um medo que não é apenas resposta a um perigo real – que existe e se tem intensificado –, mas também o reconhecimento tácito, embora difícil de nomear, da força que nos falta e do que tem ficado por construir. O medo não se manifesta apenas pelo receio de uma soqueira pintada com suásticas, mas sobretudo pelo reconhecimento de que parece estar tudo por fazer e desfazer.

O apelo à segurança – sobretudo a prometida pelo soberano – nasce do vazio gerado pelo próprio poder, e é nesse vazio que este se legitima. O medo é o afeto que permite a ligação do separado enquanto separado, criando um mundo inabitável.

A tarefa em falta consiste na construção de uma arte das distâncias: aquela que reconheça a presença como efetiva e as relações entre corpos como condição de realidade. Uma arte em que a violência existe como possibilidade sempre latente, mas onde não se cede nem à sua erupção fácil nem à recusa ingénua da sua existência.

Levantam-se indignações. Ouvem-se soluções.

Entre elas, surge o levantar de uma bandeira para enfrentar o fascismo. Um gesto que apresenta valor simbólico e uma coragem que se reconhece. No entanto, uma resposta ao perigo do fascismo não se fará com o hastear de todas as bandeiras que possamos considerar justas e defensáveis.

De nada nos vale invocar a liberdade, os direitos humanos – ou outras abstrações semelhantes – se a sua difusão assentar no reino de uma autoevidência que não contagia ninguém.

Ainda no âmbito das soluções: proibir o fascismo na constituição e apelar à atuação das autoridades é já uma derrota perante o monstro. Não mais do que o reconhecimento da nossa fraqueza.

A crise do posicionamento defensivo, pacificador e legalista não é só uma crise de força, mas da própria base em que esse posicionamento se sustenta. A tese you don't have any rights não é tanto uma provocação anarca, mas o reconhecimento de que os direitos – caso se opte por tal linguagem – não podem assentar em concessões que nos devolvam à nossa condição de sujeitos governáveis, reconhecidos meramente enquanto cidadãos.

Não se trata de estar nem com nem contra o poder, mas de ir para além deste. A prática a desenvolver ainda está por materializar…

A superação do atual estado de coisas não virá pela enésima evocação da democracia nem pelo desfile de grandes princípios. Ela começa pela recusa da separação entre corpos, mantida pela apatia e pela não-relação – com todas as implicações que isso traz.

O comunismo – ou o que se queira designar ao processo de destituição do atual estado de coisas – não é mais do que um vínculo intensificador de singularidades que se encontrem enquanto tais, e não a completa anulação de qualquer conflito. Recusar este encontro é aceitar a equivalência geral que leva à indiferença e ao apelo a que alguém a governe.

Se for necessário, tratar-se-á de um encontro para fazer a guerra, e não para a esconder debaixo do tapete com a ajuda de um qualquer agente da autoridade. Há encontros que não podem ter outro desfecho senão o conflito com quem deseja apagar a nossa possibilidade de existência – o que também implica cuidar da nossa potência.

Recusando o apelo ao Estado mas sem se afirmar que a única resposta ao medo seja o armamento ou a técnica de autodefesa. O que realmente nos permite enfrentar o medo é a experiência – eventualmente rara, mas concreta – de enfrentarmos o mundo juntas.

Uma experiência que se funda e torna contagiosa porque se inscreve em gestos concretos e partilhados. Uma experiência que não se baseia nem numa instituição nem em corpos hábeis e musculados, armados de acordo com o espírito dos tempos. Mas numa experiência que nasce de um juramento feito com quem luta connosco, ao nosso lado – não de ideais abstratos.

Esta sim é uma evidência: um murro dói de forma diversa se não tivermos sido previamente separadas, e a nossa resposta será certamente diferente com base nesse vínculo.

A dificuldade em criar um grupo de escuta e partilha com outras em nada difere da dificuldade de construir um grupo para nos defendermos diante de um facho. Engana-se quem pensa que uma é mais importante que a outra, mesmo reconhecendo a urgência da segunda.

Este vínculo não nasce de nenhuma unidade abstrata, frentista ou outra. O risco do apelo unificador passa por fundar um denominador comum que reduz as singularidades e os encontros. 

Algumas formas só se incendeiam em determinados ventos."


06/07/2025

✰ o medo do fundo (uma partilha da J.)


Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.

Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.

Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.

Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.


um poema de Wislawa Szymborska 

em Instante (trad. Elzbieta Milewska e Sérgio Neves), Relógio d’Água, 2006.


05/07/2025

✿ ver coisas com todas as partes do corpo sensíveis ao medo


"Às vezes ainda sou como antes. E outras vezes como se nunca tivesse sido aquele que era antes. Como se me tivesse saído tudo pelo buraco da cabeça, e só restasse um medo negro e as coisas que tenho à volta do pescoço. E não posso deixar de olhar para a escuridão do olho que já não vê e de ficar tonto, nem de pensar que nunca mais voltarei a ser o que era, nem de pensar que não me mataram, mas que me esmagaram para sempre. Nem de pensar que terei de voltar a morrer e que morrer mete tanto medo, e que gostaria de poder morrer então e de não ter de voltar a fazê-lo. E de não ter de aprender o medo. Porque há coisas que não queremos aprender, que não devíamos aprender, e que sempre aprendemos. E já não se pode fazer nada, não se pode querer nada, nem sentir nada, de tanto medo. Não se pode voltar a ser como se era antes, porque antes não se tinha aprendido o medo. Quando o medo entra em nós, é o fim. E então é preciso tomar comprimidos e é preciso dormir e é preciso voltar a começar um dia atrás do outro.

Quando as pessoas aparecem cá em cima para nos ver, digo-lhes que estamos a fazer um retiro, numa casa de campo, para nos inspirarmos, para escrevermos romances e essas coisas. E os meus amigos riem-se. Os meus amigos, cheios de paciência, porque as pessoas cansam-se logo de esperar que estejamos bem.

Queria falar sobre as coisas boas que encontrámos quando chegámos cá acima e do quão bem nos sentimos com a montanha e com o ar limpo quando levamos um tiro na cabeça." (Irene Solà, Eu canto e a montanha dança)



Le meraviglie
 (2014), Alice Rohrwacher


"Um dia estava a apanhar ervas com a minha avó e perguntei-lhe o que eram as cascatas. Eu via-as desde sempre, penduradas entre o céu e a terra, como as nuvens. Umas maiores, outras mais pequenas, de um azul disfarçado, bonito e transparente como o do rio. A minha avó olhou para a parte do céu para onde eu apontava e exclamou: 'Ai, Nossa Senhora, minha filha! Fizemo-la bonita!' E não disse mais nada. A minha avó chamava-se Dolors. A avó Dolors não me disse que por baixo das cascatas há poços e rios subterrâneos. Não me disse que as cascatas indicam água nem que só eu, o meu bisavô e ela é que as víamos. Nem que era por isso que ela encontrava água. Nem me disse que quem vê cascatas vê mais coisas. Mas não com os olhos. Com a barriga e com todos os pelos dos braços e da nuca, e com o fígado, com a pleura, o coração e a bílis, e com todas as partes do corpo sensíveis ao medo e à tristeza. Nem disse nada da escuridão das esquinas. Nem das coisas tão tristes que são como uma bofetada. Nem das coisas que nunca se podem fazer, sob nenhuma circunstância. Nem dos que morrem e não partem. Nem dos buracos pelos quais a terra respira. Nem da balança." (Eu canto e a montanha dança)





03/07/2025

✹ quando nos esquecemos de ter medo











Aquarius (2016), Kleber Mendonça Filho


✰ os medos (e a coragem) da E.


"O medo estava em todas as minhas células pois percebi que havia muita coisa a correr mal na minha vida e eu tinha de controlar todos os possíveis cenários. Morrer parecia um necessário descanso mas não tinha esse direito, havia alguém que eu nunca poderia magoar, desaparecendo. Sou o anjo dessa pessoa, preferi viver com medo. Já me senti com a pele quente e colada a outro e depois fui sendo abandonada, gozada até. Ficar sozinha sem nenhum abraço, conhecer-me só em mim e comigo deu medo mas agora já não tenho esse medo. Já inventei medos, à noite, que não eram reais. Já tive medo de não conseguir, ainda tenho medo de não conseguir. Já não acolho em mim sem pensar se fico drenada, tenho medo de viver para cuidar de outro mas também tenho medo das consequências da sólida solidão. Tenho medo de não ser funcional e expedita e não responder a demandas necessárias para sobreviver. Tenho medo da artificialidade que se impõe, aterroriza-me porque amo fogueiras e flores silvestres. Tenho medo de perder os direitos democráticos. Tenho medo de um dia não me mobilizar bem e querer fazer coisas. Tenho medo de um mundo sem nenhum lugar intacto." (E.) 


✹ perguntar ao medo o que o medo nos quer dizer (...)

 

(...) pode ser a pergunta certa a fazer a alguns dos medos que nos atravessam, antes de se calcificarem em certezas.

É que o medo, tantas vezes, é justamente a forma que o não-saber tem de se manifestar. Dar a este medo a agência de nos responder antes de a ele nos impormos poderia ser o gesto revelador de um caminho que ainda não se pode ver. Nesse trilho escuro, aprendemos a confiar noutros sentidos, e a ter cuidado sobre as conclusões precipitadas. Este medo é a antecâmara da autoproteção e da autopreservação; tantas vezes sob a premissa de que aquilo que somos sabemos é necessariamente delimitável.

Mais do que o domínio da luz que venha revelar os seus contornos, este medo pede uma espécie de curiosidade cautelosa perante o desconhecido e as suas sombras, os seus ruídos sem fonte à vista. Dar-lhes espaço para ressoar com uma certa reverência, na medida do possível, na quietude e no silêncio que nos impõem, antes de saber. É que este medo é real antes de descobrirmos a realidade do perigo; e o medo é uma emoção antecipatória, muito mais do que uma emoção reativa — ainda que todas as emoções, incluindo o medo, impliquem sempre uma experiência sentida enquanto reação (em-resposta a).

Mais do que a contraposição de uma coragem heróica, este medo exige a construção processual dessa curiosidade e dessa cautela, que são as suas "armas" de companhia. Curiosidade sem cautela pode levar ao movimento precoce que nos expõe ou põe em risco antes do tempo; cautela sem curiosidade pode levar à imobilização prolongada até que seja tarde demais. Pois todas as emoções têm o seu tempo de travessia e solicitam respeito pelo seu movimento, em todo o seu espectro.

Muito mais do que lutar contra elas, há que aprender a confiar nelas e no corpo que as veicula. É essa confiança que nutre a intuição, que não é mais do que a aprendizagem de uma sintonização permanentemente dupla e relacional: uma escuta do corpo atenta ao que o rodeia, no limiar entre o dentro e o fora. Uma automonitorização que nunca é fechada sobre si mesma.

O medo é uma emoção especialmente liminar, que nos encurrala no presente vivido enquanto preâmbulo; ao contrário da ansiedade, por exemplo, que nos retira do presente e nos posiciona adiantadas — e daí que elas se revezem tantas vezes, alimentando-se mutuamente.

Enquanto emoção liminar e antecipatória, o medo não nos encurrala apenas a nós no presente e ao presente — o medo traz, para o presente, outras coisas; aprendizagens cumulativas de situações passadas de perigo e insegurança; a lembrança das suas consequências reavivadas no nosso corpo. E assim o medo não nos pede apenas para confiarmos nele mas também para o desafiarmos... Sobretudo se se tratar deste medo do que não conhecemos, do que não sabemos, do que (ainda) não vemos.

E pode ser até que todo o medo — mesmo aquele que, de tão reconhecível, nos revela de antemão, com enorme precisão, a verdadeira realidade do perigo — contenha sempre uma dimensão incognoscível. O medo que sentimos pode bem ser o mesmo medo que, uma e outra vez, se fez sentir em momentos com um determinado desfecho semelhante. Mas na conjuntura sempre em mudança das nossas vidas, é impossível garantir a total constância do mesmo outcome. 

Fora o tanto que não controlamos, aquilo que muda pode começar no modo como substituímos a certeza do medo pela pergunta que lhe dirigimos; no modo como ela nos encaminha a tactear antes de concluir e, assim, a desviar o curso da realidade e a descobrir a "utilidade" dos seus mistérios enquanto tal — a necessidade de (alguma) incerteza como condição desse movimento corajoso. 

Correndo o risco de assinalar uma banalidade: a par de tudo isto, existe ainda um diluente infalível para o medo — atravessá-lo juntas.

     

02/07/2025

✹ deus me livre de ter medo agora (com Gal)




Eu agora não tô mais com medo, tô com Pedro
Eu agora não tô mais com medo, tô com Pedro

Eu agora já tô mais com Pedro do que com medo
Eu agora já tô mais com Pedro do que com medo

Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo
Se você cair não tenha medo
O mundo é fundo 
Quem pisar no fundo encontra a porta
Do fim de tudo
Bem junto da porta está São Pedro
No fim do fundo, fim do fundo

Findo!

Bem depois do fim de tudo, o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo, o medo
Do fim de tudo
Bem depois do fim do mundo, o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo, o medo
Do fim de tudo

Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo
Se você cair não tenha medo
O mundo é fundo
Quem pisar no fundo encontra a porta
Do fim de tudo
Bem junto da porta está São Pedro
No fim do fundo, fim do fundo

Findo!