07/10/2025
✹ aprender a sentir, ensinar o corpo a cuidar
18/07/2025
✿ abrir os olhos e queimar as mãos
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| Bairro do Talude, Loures. Julho de 2025 |
Harun Farocki começa o seu ensaio visual Fogo Inextinguível (1969) por ler em voz alta o testemunho de um camponês vietnamita no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, em Estocolmo, onde este relata o momento em que uma bomba de napalm explodiu perto de si, tendo queimado grande parte do seu corpo e a casa onde habitava, deixando-o inconsciente durante 13 dias. Farocki recorre a esse depoimento para nos confrontar em seguida com a aporia do pensamento e da imagem: “Se te mostrarmos imagens dos danos de napalm, tu vais fechar os olhos. Primeiro fecharás os olhos às imagens. Depois fecharás os olhos à memória. Depois fecharás os olhos aos factos. Depois fecharás os olhos à conexão entre eles.”
Enquanto gesto inaugural de uma destabilização do nosso aparato perceptivo, abrir os olhos pode representar desde logo uma acção que tem muito pouco de natural ou automático, que não devém sequer de um comportamento intuitivo e que, nesse sentido, não pode ser lido como algo que acontece, mas como algo que se faz. Como abrir os teus olhos? – perguntava em tom provocatório Didi-Huberman no enunciado crítico de um ensaio. Aquilo que a importância de abrir os olhos em primeira instância assinala é a sua dimensão processual, isto é, o facto de esse gesto se impor por uma necessidade activa de rebater um estado precedente (e em certa medida prevalecente) em que os olhos não estão abertos.
Da mesma maneira, fechar os olhos também nem sempre é apenas uma reflexo natural e inescapável, como aquele que acontece quando adormecemos cansados. Fechar os olhos é muitas vezes um recurso a que recorremos, e a que corresponde uma mecânica própria infectada por modos de afectação que condensam em si o correlato histórico, social e cultural das formas de sensibilidade específicas assimiladas em função do contexto de quem olha. Se aprendemos que é natural fechar os olhos para nos protegermos de algo que fere a susceptibilidade de um sistema de crenças e de modos de sentir ou entender, então a ideia de manter insubordinadamente os olhos abertos diante de uma circunstância particular que nos induz a fechá-los torna-se um gesto de vinculação que faz algo mais do que simplesmente superar o medo.
Steve Mcqueen, excerto de Deadpan (1997)
Abrir os olhos diante da imagem que nos enlaça é abrir espaço para resgatar o olhar, criando condições para que ela, no âmbito da sua existência viva e processual, nos queime a vista ao desfazer a percepção que tínhamos antes de ela se impor diante de nós. Quase como se aquilo que é gerado obedecesse a um processo de calcinação de tal ordem em que as convenções que demarcam o lugar a partir do qual lançamos o olhar aquecem a uma tal temperatura que nos restam somente as raízes e as coisas que vamos respigando do chão - aquelas que nos remetem a um espaço comum, que levamos da rua para casa para comer ou para a construir, e que surpreendem o fundo relacional de que somos fruto.
Pôr as mãos no fogo. Didi-Huberman encontra nesta expressão a imagem derradeira que torna consequente o acto de abrir os olhos. No âmbito do seu uso discursivo, a imagem de pôr as mãos no fogo procura sacar o gesto de vinculação em que alguém se compromete com uma dada realidade ao implicar-se nos conteúdos dela. É o gesto da radicalização de que o nosso engajamento talvez precise, no sentido em que o desdobra para lá do crer ou do dizer. Pôr as mãos no fogo serviria para nos lembrarmos que o fogo é inextinguível, mesmo (ou sobretudo) quando fechamos os olhos a ele.
Se admitimos que nos nossos modos de olhar se inscreve uma certa relação com o tempo e o espaço, então aquilo que deve ser colocado debaixo da lente é também a malha dessa mesma relação. Se as imagens não são apenas representações passivas, mas agentes activos que nos olham, assustam e interpelam, o gesto de abrir os olhos diante delas implica por isso desenvolver uma postura crítica em cujo espaço de afectação se interpelem também os modos dominantes de olhar. Assim, quando dizemos que é preciso abrir os olhos às imagens que queimam, não apontamos a um suposto dever de denúncia (“quem denuncia, isenta-se”, como lemos e ouvimos na Convocação), mas antes à necessidade de nos implicarmos na realidade processual e relacional que produz essas mesmas imagens, e que, ao fim do dia, nos intima.
Diante do medo, o enlace que nos lança o corpo ao caminho
talvez seja aquele que compreende primeiro que tudo o ancoramento ao mundo
comum do qual nos separámos, e não tanto a vertigem do nosso desassombro.
Queimar as mãos funcionaria assim como um gesto de implodir com a condição fixada de quem olha e que, numa espécie de carreira de tiro, dispara uma atenção redentora, caridosa ou revoltada para as imagens e representações desse mundo. É firmar o compromisso medular com aquilo que nos rodeia, com as chapas de zinco trituradas na boca de um bulldozer, e com tudo o que nos cai dos bolsos. Tudo o que era da gente antes da gente se atomizar em pedacinhos.
11/07/2025
✹ canção a medo
Não, não vou eu tenho medo
De chorar por este amor
Por este amor
Era seguir os teus passos
E fugir do meu caminho
Era cair nos teus braços
Pra morrer bem mais sozinho
Não, não vou eu tenho medo
De sofrer por este amor
Por este amor
Era perder o meu pouco
Sem saber se vou ou venho
Era o acabar mais louco
Do que o louco amor que eu tenho
Não, não vou eu tenho medo
De morrer de tanto amor
De tanto amor
09/07/2025
✦ ✧ algumas reflexões sobre o "estado" do medo
No dia 15 de junho de 2025, foi convocada uma mobilização, a nível nacional, sob o mote "Não queremos viver num país do medo". Em Lisboa, a concentração juntou muitas centenas de pessoas em frente ao Teatro da Barraca.
Num breve texto publicado por B.G. (aqui), o enquadramento:
(...)
Entre algumas das reivindicações da mobilização, contavam-se: (1) o fim da impunidade dos grupos violentos de extrema-direita; (2) o reforço da atenção e vigilância a estes grupos por parte das autoridades competentes; (3) a divulgação imediata do capítulo omitido do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) sobre a extrema-direita.
—
por falar em medo (F.)
"Todas percebemos o que significa, neste momento, apelar a que o medo não se torne a emoção dominante e petrificadora perante o atual estado de coisas e, em particular, os recentes episódios de agressões de grupos de extrema-direita, cuja violência se vê como cada vez mais legitimada. Mas talvez fosse pertinente questionar o medo como foco de uma demanda de mobilização geral contra o racismo, a xenofobia (e outros ismos) que, longe de serem características excecionais destes grupos, fazem parte do aparato institucional a que, ironicamente, se apela. Se sabemos do que estamos a falar quando falamos em violência sistémica, percebemos que os órgãos estatais, legais e policiais a que nos dirigimos quando reivindicamos a criminalização e a punição destes grupos, são, na verdade, agentes responsáveis na sua normalização – e assim também não nos deveria espantar que haja até uma confluência de indivíduos entre uns e outros.
Será que exigir ao Estado que se posicione e intervenha contra esta violência terá um resultado diferente daquele que é já o seu modus operandi, a sua receita em tempos intempestivos: mais controlo, mais vigilância e mais policiamento? Não haverá milagres, nem será por magia que, de repente, as mesmas instituições criadas para proteger uma determinada ordem, uma determinada hierarquia, uma determinada relação de poderes – sendo ela classista, colonialista e patriarcal até ao tutano – vão começar a agir a favor dos interesses de quem está, realmente, nas posições mais vulneráveis à violência destes grupos na sociedade. Isto é evidente na instantânea equiparação dos “extremos” que sucede nestas situações, por parte de figuras com visibilidade mediática, completamente alucinadas, e muitas vezes sem qualquer contraditório.
Por outro lado, pensemos em conjunto: a nível retórico, não será o foco na questão do medo, desde logo, e nos termos em que ela é invocada, um rótulo de passividade espectacular? “Não queremos viver num país do medo” é uma constatação evidente que não nos desafia a nada mais do que a ter um posicionamento – e, ainda por cima, bastante vago. E não é que não seja importante que esse posicionamento se faça e se dê a conhecer de algum modo, mas não seria agora um bom momento para pôr em causa o alcance deste tipo de frases vagamente unificadoras, altamente descomprometidas e, acima de tudo, sem qualquer tipo de chamada à ação concreta que não aquela que reafirma a sua confiança nas instituições do sistema?
Mantendo até o mesmo tipo de frase, poderemos pensar que diferença faria se o foco estivesse naquilo que queremos em vez de ser naquilo que não queremos? Num posicionamento afirmativo, ao invés de num posicionamento defensivo? Na coragem de que precisamos em vez de no medo que nos assola? Talvez aí se revelasse a necessidade de antagonizar a resistência, de entender realmente que barcos existem e que não, não estamos todas no mesmo barco… Que negar isso, na fé de uma união frentista antifascista, é adiar um embate que provavelmente se tornará inadiável, e para o qual estaremos menos preparadas quanto menos nos predispusermos a enfrentar a falência de um posicionamento defensivo, pacificador e legalista.
Não escrevo com certezas absolutas de nada, reafirmando sempre que me parece estar tudo por fazer e ainda por desfazer, neste limbo constante entre ir fazendo e pensar no que pode ser feito – coisas que acontecem a par e passo e que nos exigem força, espírito crítico, e capacidade de aprender com o passado histórico e recente, desenterrando conhecimento que nos tem sido negado, ao mesmo tempo que precisamos de desaprender tanta coisa. Parece-me, porém, que uma postura que se assume na base da negação (fator indispensável a uma ação de denúncia e reivindicação de algo que se quer contrariar, rebater, contra-atacar), mas que o faz dirigindo-se ao "poder político", não tem como não morrer na praia quando se fica por aí.
Que temos de ocupar as ruas, isso é certo. Mas continuar a fazê-lo nos parâmetros em que tem sido feito, à espera que a mudança venha de cima, contribui para prolongar uma desresponsabilização coletiva sob a ilusão de que o protesto às autoridades é suficiente.
Como qualquer emoção, o medo tem uma função cognitiva de situar o nosso corpo num determinado ambiente e influenciar o modo como nos iremos movimentar nele. Lido à letra, “viver sem medo” – isto é, erradicar o medo das nossas vidas – seria como viver sem o botão psíquico e somático que se ativa quando somos confrontadas com a perceção de perigo ou insegurança.
Nesse sentido, precisamos, de facto, do medo. De saber senti-lo e de processar aquilo que nos está a mostrar, até se transformar noutra coisa. O modo como o nosso corpo responde ao medo não é igual para toda a gente nem em todas as situações. Se o medo pode ter um efeito paralisante, também pode ser a emoção que nos leva a evitar ou a fugir de uma situação potencialmente perigosa ou a gritar por socorro, a identificar o que nos assusta e como podemos sair dali em direção a um lugar seguro. Que lugar seguro será esse? A resposta não é igual para todas.
Cada vez sinto mais que, para contrariar a lógica binária no que diz respeito às emoções e à sua catalogação em positivo versus negativo, se é realmente a liberdade que nos interessa (mais uma vez, a liberdade de quem?), não é grande estratégia tentar criar um sapato que caiba a todas, quando nessa ambição universalista caímos justamente na totalização. E que falar de liberdade é menos útil do que falar em libertação, no que a isso diz respeito. Mas o comum existe. No leque das emoções que, provavelmente, estaremos a sentir coletivamente, o medo é, sem dúvida, uma delas, e com razão. Assim, trabalhar (com) a energia do medo e treinar o nosso corpo para identificar e sentir medo neste momento é importante.
Rastrear aquilo que mais nos assusta e observar as formas que o medo assume no nosso dia-a-dia. Perceber as diferenças entre os diferentes medos que sentimos, os seus tamanhos e efeitos, de onde vêm, e a sua correspondência com o nível das ameaças reais que enfrentamos e aquelas que são geradas em torno de percepções mais abstratas. Encontrar canais criativos para a sua expressão. Constatar como o medo é instrumentalizado pelo poder, aqui e em toda a parte. Procurar conhecer o(s) medo(s) dos outros, naquilo em que são parecidos e naquilo em que são distintos. Criar espaços e disponibilizar instâncias em que nos sentimos seguras e onde podemos ser acolhidas e acolher outras pessoas que também estão a senti-lo. Ou, pelo contrário, conhecendo melhor os medos dos nossos inimigos, identificar, por extensão, as suas fraquezas. Desenvolver e partilhar práticas e táticas de auto-defesa e auto-proteção, a nível individual e coletivo.
O medo é uma emoção útil em muitas circunstâncias, inclusive agora, mas é capaz de não ser o melhor outlet para uma mobilização política de revolta e tomada de ação pública em reação àquilo que está em causa. O medo não é uma emoção propícia a um estado de espírito revolucionário, porque leva o nosso corpo a procurar a segurança e a apaziguação, o conforto e a conciliação. E honestamente, essa procura fica muito aquém daquilo que precisamos de levar para a rua neste momento. Ou seja, por um lado, isto poderia ser algo que corrobora a premissa do “não querermos viver com medo”. Por outro lado, o que estou a dizer é que não basta dizer que não queremos viver com medo – aceitando já que é sobre a rejeição dessa emoção (instalada) que operamos.
Embora, dentro do contexto, o apelo convoque a pressuposição de outras emoções quando invocado na forma negativa – indignação, frustração, ansiedade, preocupação, entre outras – não deixa de dar destaque a todo um espectro que opera sobretudo no âmbito emocional da fragilidade – impotência, desamparo, insegurança, exposição/rejeição. É nesta premissa que facilmente resvalamos para um discurso que fantasia com uma resposta securitária, sobretudo se nos estamos a dirigir aos aparelhos institucionais. Porque não a raiva? O ódio à injustiça? Porque temos medo de assumir realmente uma frente de combate?
Mas além disso, voltando à questão dos inimigos, urge convocar uma reflexão um pouco mais exigente sobre as dinâmicas de subjetivação em jogo nestes apelos unificadores, para chegar à conclusão de que as emoções não são o melhor ponto de entrada neste tipo de convocatórias, nem tão pouco nos servirá um humanismo lato que se esquiva ao antagonismo que possa fazer frente à opressão cada vez mais latente, e nos sirva na constituição de uma luta contra a escalada do fascismo. Estes grupos de extrema direita não são uma anomalia do sistema, mas uma expressão impecável dos vários pilares que sustentam aquilo que o capitalismo está desenhado para produzir e reproduzir.
Por fim, ainda muito poderia ser dito sobre a perspetiva patriótica que o apelo assume no destaque ao “país” como lugar onde não queremos viver com medo… Independentemente de se estar a reagir a algo que está a acontecer em Portugal, sabemos bem que estamos perante um cenário que, apesar das suas variantes geográficas, só pode ser devidamente compreendido (e combatido) de uma perspetiva internacionalista, no derrubar de uma visão fronteirista e na construção de uma solidariedade que terá de se erguer contra o poder e não com ele."
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do medo ao vínculo (A.)
"O monstro está aí, em marcha. Apresenta-se a horas certas e afirma seguir o normal funcionamento das instituições. Surge de gravata e barba aparada na televisão, ocupando esse grande circo denominado “casa da democracia”. Outras vezes aparece como batalhão – esporádico, mas ruidoso –, em concentrações em datas simbólicas ou em ataques no meio da rua.
Mas também veste outras roupagens. Infiltra-se num quotidiano que nos tentam vender enquanto normalidade – e que mais não é do que a continuação da guerra por outros meios.
Encontra-se na distância que se mantém em relação àqueles que nos trazem um pedido à mesa (ou a casa); na cancela que apenas se abre através de cartão contactless – se não se saltar sobre ela... –; na bófia que nos manda circular pois "aqui não há nada para ver"; na distinção que se compra e se faz questão de levar na lapela; ou no olhar desviado diante da incógnita que a outra carrega em si.
Este processo não surgiu de repente. A domesticação e administração da vida instauram, há muito, a separação e a impotência como modo de vida, onde o medo se torna afeto estrutural. Um medo que não é apenas resposta a um perigo real – que existe e se tem intensificado –, mas também o reconhecimento tácito, embora difícil de nomear, da força que nos falta e do que tem ficado por construir. O medo não se manifesta apenas pelo receio de uma soqueira pintada com suásticas, mas sobretudo pelo reconhecimento de que parece estar tudo por fazer e desfazer.
O apelo à segurança – sobretudo a prometida pelo soberano – nasce do vazio gerado pelo próprio poder, e é nesse vazio que este se legitima. O medo é o afeto que permite a ligação do separado enquanto separado, criando um mundo inabitável.
A tarefa em falta consiste na construção de uma arte das distâncias: aquela que reconheça a presença como efetiva e as relações entre corpos como condição de realidade. Uma arte em que a violência existe como possibilidade sempre latente, mas onde não se cede nem à sua erupção fácil nem à recusa ingénua da sua existência.
Levantam-se indignações. Ouvem-se soluções.
Entre elas, surge o levantar de uma bandeira para enfrentar o fascismo. Um gesto que apresenta valor simbólico e uma coragem que se reconhece. No entanto, uma resposta ao perigo do fascismo não se fará com o hastear de todas as bandeiras que possamos considerar justas e defensáveis.
De nada nos vale invocar a liberdade, os direitos humanos – ou outras abstrações semelhantes – se a sua difusão assentar no reino de uma autoevidência que não contagia ninguém.
Ainda no âmbito das soluções: proibir o fascismo na constituição e apelar à atuação das autoridades é já uma derrota perante o monstro. Não mais do que o reconhecimento da nossa fraqueza.
A crise do posicionamento defensivo, pacificador e legalista não é só uma crise de força, mas da própria base em que esse posicionamento se sustenta. A tese you don't have any rights não é tanto uma provocação anarca, mas o reconhecimento de que os direitos – caso se opte por tal linguagem – não podem assentar em concessões que nos devolvam à nossa condição de sujeitos governáveis, reconhecidos meramente enquanto cidadãos.
Não se trata de estar nem com nem contra o poder, mas de ir para além deste. A prática a desenvolver ainda está por materializar…
A superação do atual estado de coisas não virá pela enésima evocação da democracia nem pelo desfile de grandes princípios. Ela começa pela recusa da separação entre corpos, mantida pela apatia e pela não-relação – com todas as implicações que isso traz.
O comunismo – ou o que se queira designar ao processo de destituição do atual estado de coisas – não é mais do que um vínculo intensificador de singularidades que se encontrem enquanto tais, e não a completa anulação de qualquer conflito. Recusar este encontro é aceitar a equivalência geral que leva à indiferença e ao apelo a que alguém a governe.
Se for necessário, tratar-se-á de um encontro para fazer a guerra, e não para a esconder debaixo do tapete com a ajuda de um qualquer agente da autoridade. Há encontros que não podem ter outro desfecho senão o conflito com quem deseja apagar a nossa possibilidade de existência – o que também implica cuidar da nossa potência.
Recusando o apelo ao Estado mas sem se afirmar que a única resposta ao medo seja o armamento ou a técnica de autodefesa. O que realmente nos permite enfrentar o medo é a experiência – eventualmente rara, mas concreta – de enfrentarmos o mundo juntas.
Uma experiência que se funda e torna contagiosa porque se inscreve em gestos concretos e partilhados. Uma experiência que não se baseia nem numa instituição nem em corpos hábeis e musculados, armados de acordo com o espírito dos tempos. Mas numa experiência que nasce de um juramento feito com quem luta connosco, ao nosso lado – não de ideais abstratos.
Esta sim é uma evidência: um murro dói de forma diversa se não tivermos sido previamente separadas, e a nossa resposta será certamente diferente com base nesse vínculo.
A dificuldade em criar um grupo de escuta e partilha com outras em nada difere da dificuldade de construir um grupo para nos defendermos diante de um facho. Engana-se quem pensa que uma é mais importante que a outra, mesmo reconhecendo a urgência da segunda.
Este vínculo não nasce de nenhuma unidade abstrata, frentista ou outra. O risco do apelo unificador passa por fundar um denominador comum que reduz as singularidades e os encontros.
Algumas formas só se incendeiam em determinados ventos."
06/07/2025
✰ o medo do fundo (uma partilha da J.)
Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.
Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.
Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.
Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.
um poema de Wislawa Szymborska
em Instante (trad. Elzbieta Milewska e Sérgio Neves), Relógio d’Água, 2006.
05/07/2025
✿ ver coisas com todas as partes do corpo sensíveis ao medo
"Às vezes ainda sou como antes. E outras vezes como se nunca tivesse sido aquele que era antes. Como se me tivesse saído tudo pelo buraco da cabeça, e só restasse um medo negro e as coisas que tenho à volta do pescoço. E não posso deixar de olhar para a escuridão do olho que já não vê e de ficar tonto, nem de pensar que nunca mais voltarei a ser o que era, nem de pensar que não me mataram, mas que me esmagaram para sempre. Nem de pensar que terei de voltar a morrer e que morrer mete tanto medo, e que gostaria de poder morrer então e de não ter de voltar a fazê-lo. E de não ter de aprender o medo. Porque há coisas que não queremos aprender, que não devíamos aprender, e que sempre aprendemos. E já não se pode fazer nada, não se pode querer nada, nem sentir nada, de tanto medo. Não se pode voltar a ser como se era antes, porque antes não se tinha aprendido o medo. Quando o medo entra em nós, é o fim. E então é preciso tomar comprimidos e é preciso dormir e é preciso voltar a começar um dia atrás do outro.
Quando as pessoas aparecem cá em cima para nos ver, digo-lhes que estamos a fazer um retiro, numa casa de campo, para nos inspirarmos, para escrevermos romances e essas coisas. E os meus amigos riem-se. Os meus amigos, cheios de paciência, porque as pessoas cansam-se logo de esperar que estejamos bem.
Queria falar sobre as coisas boas que encontrámos quando chegámos cá acima e do quão bem nos sentimos com a montanha e com o ar limpo quando levamos um tiro na cabeça." (Irene Solà, Eu canto e a montanha dança)
Le meraviglie (2014), Alice Rohrwacher
"Um dia estava a apanhar ervas com a minha avó e perguntei-lhe o que eram as cascatas. Eu via-as desde sempre, penduradas entre o céu e a terra, como as nuvens. Umas maiores, outras mais pequenas, de um azul disfarçado, bonito e transparente como o do rio. A minha avó olhou para a parte do céu para onde eu apontava e exclamou: 'Ai, Nossa Senhora, minha filha! Fizemo-la bonita!' E não disse mais nada. A minha avó chamava-se Dolors. A avó Dolors não me disse que por baixo das cascatas há poços e rios subterrâneos. Não me disse que as cascatas indicam água nem que só eu, o meu bisavô e ela é que as víamos. Nem que era por isso que ela encontrava água. Nem me disse que quem vê cascatas vê mais coisas. Mas não com os olhos. Com a barriga e com todos os pelos dos braços e da nuca, e com o fígado, com a pleura, o coração e a bílis, e com todas as partes do corpo sensíveis ao medo e à tristeza. Nem disse nada da escuridão das esquinas. Nem das coisas tão tristes que são como uma bofetada. Nem das coisas que nunca se podem fazer, sob nenhuma circunstância. Nem dos que morrem e não partem. Nem dos buracos pelos quais a terra respira. Nem da balança." (Eu canto e a montanha dança)
03/07/2025
✰ os medos (e a coragem) da E.
"O medo estava em todas as minhas células pois percebi que havia muita coisa a correr mal na minha vida e eu tinha de controlar todos os possíveis cenários. Morrer parecia um necessário descanso mas não tinha esse direito, havia alguém que eu nunca poderia magoar, desaparecendo. Sou o anjo dessa pessoa, preferi viver com medo. Já me senti com a pele quente e colada a outro e depois fui sendo abandonada, gozada até. Ficar sozinha sem nenhum abraço, conhecer-me só em mim e comigo deu medo mas agora já não tenho esse medo. Já inventei medos, à noite, que não eram reais. Já tive medo de não conseguir, ainda tenho medo de não conseguir. Já não acolho em mim sem pensar se fico drenada, tenho medo de viver para cuidar de outro mas também tenho medo das consequências da sólida solidão. Tenho medo de não ser funcional e expedita e não responder a demandas necessárias para sobreviver. Tenho medo da artificialidade que se impõe, aterroriza-me porque amo fogueiras e flores silvestres. Tenho medo de perder os direitos democráticos. Tenho medo de um dia não me mobilizar bem e querer fazer coisas. Tenho medo de um mundo sem nenhum lugar intacto." (E.)
✹ perguntar ao medo o que o medo nos quer dizer (...)
(...) pode ser a pergunta certa a fazer a alguns dos medos que nos atravessam, antes de se calcificarem em certezas.
É que o medo, tantas vezes, é justamente a forma que o não-saber tem de se manifestar. Dar a este medo a agência de nos responder antes de a ele nos impormos poderia ser o gesto revelador de um caminho que ainda não se pode ver. Nesse trilho escuro, aprendemos a confiar noutros sentidos, e a ter cuidado sobre as conclusões precipitadas. Este medo é a antecâmara da autoproteção e da autopreservação; tantas vezes sob a premissa de que aquilo que somos e sabemos é necessariamente delimitável.
Mais do que o domínio da luz que venha revelar os seus contornos, este medo pede uma espécie de curiosidade cautelosa perante o desconhecido e as suas sombras, os seus ruídos sem fonte à vista. Dar-lhes espaço para ressoar com uma certa reverência, na medida do possível, na quietude e no silêncio que nos impõem, antes de saber. É que este medo é real antes de descobrirmos a realidade do perigo; e o medo é uma emoção antecipatória, muito mais do que uma emoção reativa — ainda que todas as emoções, incluindo o medo, impliquem sempre uma experiência sentida enquanto reação (em-resposta a).
Mais do que a contraposição de uma coragem heróica, este medo exige a construção processual dessa curiosidade e dessa cautela, que são as suas "armas" de companhia. Curiosidade sem cautela pode levar ao movimento precoce que nos expõe ou põe em risco antes do tempo; cautela sem curiosidade pode levar à imobilização prolongada até que seja tarde demais. Pois todas as emoções têm o seu tempo de travessia e solicitam respeito pelo seu movimento, em todo o seu espectro.
Muito mais do que lutar contra elas, há que aprender a confiar nelas e no corpo que as veicula. É essa confiança que nutre a intuição, que não é mais do que a aprendizagem de uma sintonização permanentemente dupla e relacional: uma escuta do corpo atenta ao que o rodeia, no limiar entre o dentro e o fora. Uma automonitorização que nunca é fechada sobre si mesma.
O medo é uma emoção especialmente liminar, que nos encurrala no presente vivido enquanto preâmbulo; ao contrário da ansiedade, por exemplo, que nos retira do presente e nos posiciona adiantadas — e daí que elas se revezem tantas vezes, alimentando-se mutuamente.
Enquanto emoção liminar e antecipatória, o medo não nos encurrala apenas a nós no presente e ao presente — o medo traz, para o presente, outras coisas; aprendizagens cumulativas de situações passadas de perigo e insegurança; a lembrança das suas consequências reavivadas no nosso corpo. E assim o medo não nos pede apenas para confiarmos nele mas também para o desafiarmos... Sobretudo se se tratar deste medo do que não conhecemos, do que não sabemos, do que (ainda) não vemos.
E pode ser até que todo o medo — mesmo aquele que, de tão reconhecível, nos revela de antemão, com enorme precisão, a verdadeira realidade do perigo — contenha sempre uma dimensão incognoscível. O medo que sentimos pode bem ser o mesmo medo que, uma e outra vez, se fez sentir em momentos com um determinado desfecho semelhante. Mas na conjuntura sempre em mudança das nossas vidas, é impossível garantir a total constância do mesmo outcome.
Fora o tanto que não controlamos, aquilo que muda pode começar no modo como substituímos a certeza do medo pela pergunta que lhe dirigimos; no modo como ela nos encaminha a tactear antes de concluir e, assim, a desviar o curso da realidade e a descobrir a "utilidade" dos seus mistérios enquanto tal — a necessidade de (alguma) incerteza como condição desse movimento corajoso.
Correndo o risco de assinalar uma banalidade: a par de tudo isto, existe ainda um diluente infalível para o medo — atravessá-lo juntas.
02/07/2025
✹ deus me livre de ter medo agora (com Gal)
Findo!
Findo!













