18/07/2025

✿ abrir os olhos e queimar as mãos



Bairro do Talude, Loures. Julho de 2025

Harun Farocki começa o seu ensaio visual Fogo Inextinguível (1969) por ler em voz alta o testemunho de um camponês vietnamita no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, em Estocolmo, onde este relata o momento em que uma bomba de napalm explodiu perto de si, tendo queimado grande parte do seu corpo e a casa onde habitava, deixando-o inconsciente durante 13 dias. Farocki recorre a esse depoimento para nos confrontar em seguida com a aporia do pensamento e da imagem: “Se te mostrarmos imagens dos danos de napalm, tu vais fechar os olhos. Primeiro fecharás os olhos às imagens. Depois fecharás os olhos à memória. Depois fecharás os olhos aos factos. Depois fecharás os olhos à conexão entre eles.”

Enquanto gesto inaugural de uma destabilização do nosso aparato perceptivo, abrir os olhos pode representar desde logo uma acção que tem muito pouco de natural ou automático, que não devém sequer de um comportamento intuitivo e que, nesse sentido, não pode ser lido como algo que acontece, mas como algo que se faz. Como abrir os teus olhos? – perguntava em tom provocatório Didi-Huberman no enunciado crítico de um ensaio. Aquilo que a importância de abrir os olhos em primeira instância assinala é a sua dimensão processual, isto é, o facto de esse gesto se impor por uma necessidade activa de rebater um estado precedente (e em certa medida prevalecente) em que os olhos não estão abertos.

Da mesma maneira, fechar os olhos também nem sempre é apenas uma reflexo natural e inescapável, como aquele que acontece quando adormecemos cansados. Fechar os olhos é muitas vezes um recurso a que recorremos, e a que corresponde uma mecânica própria infectada por modos de afectação que condensam em si o correlato histórico, social e cultural das formas de sensibilidade específicas assimiladas em função do contexto de quem olha. Se aprendemos que é natural fechar os olhos para nos protegermos de algo que fere a susceptibilidade de um sistema de crenças e de modos de sentir ou entender, então a ideia de manter insubordinadamente os olhos abertos diante de uma circunstância particular que nos induz a fechá-los torna-se um gesto de vinculação que faz algo mais do que simplesmente superar o medo.



Steve Mcqueen, excerto de Deadpan (1997)

Abrir os olhos diante da imagem que nos enlaça é abrir espaço para resgatar o olhar, criando condições para que ela, no âmbito da sua existência viva e processual, nos queime a vista ao desfazer a percepção que tínhamos antes de ela se impor diante de nós. Quase como se aquilo que é gerado obedecesse a um processo de calcinação de tal ordem em que as convenções que demarcam o lugar a partir do qual lançamos o olhar aquecem a uma tal temperatura que nos restam somente as raízes e as coisas que vamos respigando do chão - aquelas que nos remetem a um espaço comum, que levamos da rua para casa para comer ou para a construir, e que surpreendem o fundo relacional de que somos fruto.

Pôr as mãos no fogo. Didi-Huberman encontra nesta expressão a imagem derradeira que torna consequente o acto de abrir os olhos. No âmbito do seu uso discursivo, a imagem de pôr as mãos no fogo procura sacar o gesto de vinculação em que alguém se compromete com uma dada realidade ao implicar-se nos conteúdos dela. É o gesto da radicalização de que o nosso engajamento talvez precise, no sentido em que o desdobra para lá do crer ou do dizerPôr as mãos no fogo serviria para nos lembrarmos que o fogo é inextinguível, mesmo (ou sobretudo) quando fechamos os olhos a ele.

Se admitimos que nos nossos modos de olhar se inscreve uma certa relação com o tempo e o espaço, então aquilo que deve ser colocado debaixo da lente é também a malha dessa mesma relação. Se as imagens não são apenas representações passivas, mas agentes activos que nos olham, assustam e interpelam, o gesto de abrir os olhos diante delas implica por isso desenvolver uma postura crítica em cujo espaço de afectação se interpelem também os modos dominantes de olhar. Assim, quando dizemos que é preciso abrir os olhos às imagens que queimam, não apontamos a um suposto dever de denúncia (“quem denuncia, isenta-se”, como lemos e ouvimos na Convocação), mas antes à necessidade de nos implicarmos na realidade processual e relacional que produz essas mesmas imagens, e que, ao fim do dia, nos intima.

Diante do medo, o enlace que nos lança o corpo ao caminho talvez seja aquele que compreende primeiro que tudo o ancoramento ao mundo comum do qual nos separámos, e não tanto a vertigem do nosso desassombro.

Queimar as mãos funcionaria assim como um gesto de implodir com a condição fixada de quem olha e que, numa espécie de carreira de tiro, dispara uma atenção redentora, caridosa ou revoltada para as imagens e representações desse mundo. É firmar o compromisso medular com aquilo que nos rodeia, com as chapas de zinco trituradas na boca de um bulldozer, e com tudo o que nos cai dos bolsos. Tudo o que era da gente antes da gente se atomizar em pedacinhos.