05/07/2025

✿ ver coisas com todas as partes do corpo sensíveis ao medo


"Às vezes ainda sou como antes. E outras vezes como se nunca tivesse sido aquele que era antes. Como se me tivesse saído tudo pelo buraco da cabeça, e só restasse um medo negro e as coisas que tenho à volta do pescoço. E não posso deixar de olhar para a escuridão do olho que já não vê e de ficar tonto, nem de pensar que nunca mais voltarei a ser o que era, nem de pensar que não me mataram, mas que me esmagaram para sempre. Nem de pensar que terei de voltar a morrer e que morrer mete tanto medo, e que gostaria de poder morrer então e de não ter de voltar a fazê-lo. E de não ter de aprender o medo. Porque há coisas que não queremos aprender, que não devíamos aprender, e que sempre aprendemos. E já não se pode fazer nada, não se pode querer nada, nem sentir nada, de tanto medo. Não se pode voltar a ser como se era antes, porque antes não se tinha aprendido o medo. Quando o medo entra em nós, é o fim. E então é preciso tomar comprimidos e é preciso dormir e é preciso voltar a começar um dia atrás do outro.

Quando as pessoas aparecem cá em cima para nos ver, digo-lhes que estamos a fazer um retiro, numa casa de campo, para nos inspirarmos, para escrevermos romances e essas coisas. E os meus amigos riem-se. Os meus amigos, cheios de paciência, porque as pessoas cansam-se logo de esperar que estejamos bem.

Queria falar sobre as coisas boas que encontrámos quando chegámos cá acima e do quão bem nos sentimos com a montanha e com o ar limpo quando levamos um tiro na cabeça." (Irene Solà, Eu canto e a montanha dança)



Le meraviglie
 (2014), Alice Rohrwacher


"Um dia estava a apanhar ervas com a minha avó e perguntei-lhe o que eram as cascatas. Eu via-as desde sempre, penduradas entre o céu e a terra, como as nuvens. Umas maiores, outras mais pequenas, de um azul disfarçado, bonito e transparente como o do rio. A minha avó olhou para a parte do céu para onde eu apontava e exclamou: 'Ai, Nossa Senhora, minha filha! Fizemo-la bonita!' E não disse mais nada. A minha avó chamava-se Dolors. A avó Dolors não me disse que por baixo das cascatas há poços e rios subterrâneos. Não me disse que as cascatas indicam água nem que só eu, o meu bisavô e ela é que as víamos. Nem que era por isso que ela encontrava água. Nem me disse que quem vê cascatas vê mais coisas. Mas não com os olhos. Com a barriga e com todos os pelos dos braços e da nuca, e com o fígado, com a pleura, o coração e a bílis, e com todas as partes do corpo sensíveis ao medo e à tristeza. Nem disse nada da escuridão das esquinas. Nem das coisas tão tristes que são como uma bofetada. Nem das coisas que nunca se podem fazer, sob nenhuma circunstância. Nem dos que morrem e não partem. Nem dos buracos pelos quais a terra respira. Nem da balança." (Eu canto e a montanha dança)