09/07/2025

✦ ✧ algumas reflexões sobre o "estado" do medo

 


(contexto)

No dia 15 de junho de 2025, foi convocada uma mobilização, a nível nacional, sob o mote "Não queremos viver num país do medo". Em Lisboa, a concentração juntou muitas centenas de pessoas em frente ao Teatro da Barraca.
Num breve texto publicado por B.G. (aqui), o enquadramento:



        









(...)


Entre algumas das reivindicações da mobilização, contavam-se: (1) o fim da impunidade dos grupos violentos de extrema-direita; (2) o reforço da atenção e vigilância a estes grupos por parte das autoridades competentes; (3) a divulgação imediata do capítulo omitido do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) sobre a extrema-direita.




por falar em medo (F.)


"Todas percebemos o que significa, neste momento, apelar a que o medo não se torne a emoção dominante e petrificadora perante o atual estado de coisas e, em particular, os recentes episódios de agressões de grupos de extrema-direita, cuja violência se vê como cada vez mais legitimada. Mas talvez fosse pertinente questionar o medo como foco de uma demanda de mobilização geral contra o racismo, a xenofobia (e outros ismos) que, longe de serem características excecionais destes grupos, fazem parte do aparato institucional a que, ironicamente, se apela. Se sabemos do que estamos a falar quando falamos em violência sistémica, percebemos que os órgãos estatais, legais e policiais a que nos dirigimos quando reivindicamos a criminalização e a punição destes grupos, são, na verdade, agentes responsáveis na sua normalização – e assim também não nos deveria espantar que haja até uma confluência de indivíduos entre uns e outros. 

Será que exigir ao Estado que se posicione e intervenha contra esta violência terá um resultado diferente daquele que é já o seu modus operandi, a sua receita em tempos intempestivos: mais controlo, mais vigilância e mais policiamento? Não haverá milagres, nem será por magia que, de repente, as mesmas instituições criadas para proteger uma determinada ordem, uma determinada hierarquia, uma determinada relação de poderes – sendo ela classista, colonialista e patriarcal até ao tutano – vão começar a agir a favor dos interesses de quem está, realmente, nas posições mais vulneráveis à violência destes grupos na sociedade. Isto é evidente na instantânea equiparação dos “extremos” que sucede nestas situações, por parte de figuras com visibilidade mediática, completamente alucinadas, e muitas vezes sem qualquer contraditório.

Por outro lado, pensemos em conjunto: a nível retórico, não será o foco na questão do medo, desde logo, e nos termos em que ela é invocada, um rótulo de passividade espectacular? “Não queremos viver num país do medo” é uma constatação evidente que não nos desafia a nada mais do que a ter um posicionamento – e, ainda por cima, bastante vago. E não é que não seja importante que esse posicionamento se faça e se dê a conhecer de algum modo, mas não seria agora um bom momento para pôr em causa o alcance deste tipo de frases vagamente unificadoras, altamente descomprometidas e, acima de tudo, sem qualquer tipo de chamada à ação concreta que não aquela que reafirma a sua confiança nas instituições do sistema? 

Mantendo até o mesmo tipo de frase, poderemos pensar que diferença faria se o foco estivesse naquilo que queremos em vez de ser naquilo que não queremos? Num posicionamento afirmativo, ao invés de num posicionamento defensivo? Na coragem de que precisamos em vez de no medo que nos assola? Talvez aí se revelasse a necessidade de antagonizar a resistência, de entender realmente que barcos existem e que não, não estamos todas no mesmo barco… Que negar isso, na fé de uma união frentista antifascista, é adiar um embate que provavelmente se tornará inadiável, e para o qual estaremos menos preparadas quanto menos nos predispusermos a enfrentar a falência de um posicionamento defensivo, pacificador e legalista.

Não escrevo com certezas absolutas de nada, reafirmando sempre que me parece estar tudo por fazer e ainda por desfazer, neste limbo constante entre ir fazendo e pensar no que pode ser feito – coisas que acontecem a par e passo e que nos exigem força, espírito crítico, e capacidade de aprender com o passado histórico e recente, desenterrando conhecimento que nos tem sido negado, ao mesmo tempo que precisamos de desaprender tanta coisa. Parece-me, porém, que uma postura que se assume na base da negação (fator indispensável a uma ação de denúncia e reivindicação de algo que se quer contrariar, rebater, contra-atacar), mas que o faz dirigindo-se ao "poder político", não tem como não morrer na praia quando se fica por aí.

Que temos de ocupar as ruas, isso é certo. Mas continuar a fazê-lo nos parâmetros em que tem sido feito, à espera que a mudança venha de cima, contribui para prolongar uma desresponsabilização coletiva sob a ilusão de que o protesto às autoridades é suficiente. 


Como qualquer emoção, o medo tem uma função cognitiva de situar o nosso corpo num determinado ambiente e influenciar o modo como nos iremos movimentar nele. Lido à letra, “viver sem medo” – isto é, erradicar o medo das nossas vidas – seria como viver sem o botão psíquico e somático que se ativa quando somos confrontadas com a perceção de perigo ou insegurança.

Nesse sentido, precisamos, de facto, do medo. De saber senti-lo e de processar aquilo que nos está a mostrar, até se transformar noutra coisa. O modo como o nosso corpo responde ao medo não é igual para toda a gente nem em todas as situações. Se o medo pode ter um efeito paralisante, também pode ser a emoção que nos leva a evitar ou a fugir de uma situação potencialmente perigosa ou a gritar por socorro, a identificar o que nos assusta e como podemos sair dali em direção a um lugar seguro. Que lugar seguro será esse? A resposta não é igual para todas.

Cada vez sinto mais que, para contrariar a lógica binária no que diz respeito às emoções e à sua catalogação em positivo versus negativo, se é realmente a liberdade que nos interessa (mais uma vez, a liberdade de quem?), não é grande estratégia tentar criar um sapato que caiba a todas, quando nessa ambição universalista caímos justamente na totalização. E que falar de liberdade é menos útil do que falar em libertação, no que a isso diz respeito. Mas o comum existe. No leque das emoções que, provavelmente, estaremos a sentir coletivamente, o medo é, sem dúvida, uma delas, e com razão. Assim, trabalhar (com) a energia do medo e treinar o nosso corpo para identificar e sentir medo neste momento é importante.

Rastrear aquilo que mais nos assusta e observar as formas que o medo assume no nosso dia-a-dia. Perceber as diferenças entre os diferentes medos que sentimos, os seus tamanhos e efeitos, de onde vêm, e a sua correspondência com o nível das ameaças reais que enfrentamos e aquelas que são geradas em torno de percepções mais abstratas. Encontrar canais criativos para a sua expressão. Constatar como o medo é instrumentalizado pelo poder, aqui e em toda a parte. Procurar conhecer o(s) medo(s) dos outros, naquilo em que são parecidos e naquilo em que são distintos. Criar espaços e disponibilizar instâncias em que nos sentimos seguras e onde podemos ser acolhidas e acolher outras pessoas que também estão a senti-lo. Ou, pelo contrário, conhecendo melhor os medos dos nossos inimigos, identificar, por extensão, as suas fraquezas. Desenvolver e partilhar práticas e táticas de auto-defesa e auto-proteção, a nível individual e coletivo. 

O medo é uma emoção útil em muitas circunstâncias, inclusive agora, mas é capaz de não ser o melhor outlet para uma mobilização política de revolta e tomada de ação pública em reação àquilo que está em causa. O medo não é uma emoção propícia a um estado de espírito revolucionário, porque leva o nosso corpo a procurar a segurança e a apaziguação, o conforto e a conciliação. E honestamente, essa procura fica muito aquém daquilo que precisamos de levar para a rua neste momento. Ou seja, por um lado, isto poderia ser algo que corrobora a premissa do “não querermos viver com medo”. Por outro lado, o que estou a dizer é que não basta dizer que não queremos viver com medo – aceitando já que é sobre a rejeição dessa emoção (instalada) que operamos. 

Embora, dentro do contexto, o apelo convoque a pressuposição de outras emoções quando invocado na forma negativa – indignação, frustração, ansiedade, preocupação, entre outras – não deixa de dar destaque a todo um espectro que opera sobretudo no âmbito emocional da fragilidade – impotência, desamparo, insegurança, exposição/rejeição. É nesta premissa que facilmente resvalamos para um discurso que fantasia com uma resposta securitária, sobretudo se nos estamos a dirigir aos aparelhos institucionais. Porque não a raiva? O ódio à injustiça? Porque temos medo de assumir realmente uma frente de combate?

Mas além disso, voltando à questão dos inimigos, urge convocar uma reflexão um pouco mais exigente sobre as dinâmicas de subjetivação em jogo nestes apelos unificadores, para chegar à conclusão de que as emoções não são o melhor ponto de entrada neste tipo de convocatórias, nem tão pouco nos servirá um humanismo lato que se esquiva ao antagonismo que possa fazer frente à opressão cada vez mais latente, e nos sirva na constituição de uma luta contra a escalada do fascismo. Estes grupos de extrema direita não são uma anomalia do sistema, mas uma expressão impecável dos vários pilares que sustentam aquilo que o capitalismo está desenhado para produzir e reproduzir.

Por fim, ainda muito poderia ser dito sobre a perspetiva patriótica que o apelo assume no destaque ao “país” como lugar onde não queremos viver com medo… Independentemente de se estar a reagir a algo que está a acontecer em Portugal, sabemos bem que estamos perante um cenário que, apesar das suas variantes geográficas, só pode ser devidamente compreendido (e combatido) de uma perspetiva internacionalista, no derrubar de uma visão fronteirista e na construção de uma solidariedade que terá de se erguer contra o poder e não com ele."


do medo ao vínculo
(A.)


"O monstro está aí, em marcha. Apresenta-se a horas certas e afirma seguir o normal funcionamento das instituições. Surge de gravata e barba aparada na televisão, ocupando esse grande circo denominado “casa da democracia”. Outras vezes aparece como batalhão – esporádico, mas ruidoso –, em concentrações em datas simbólicas ou em ataques no meio da rua.

Mas também veste outras roupagens. Infiltra-se num quotidiano que nos tentam vender enquanto normalidade – e que mais não é do que a continuação da guerra por outros meios. 

Encontra-se na distância que se mantém em relação àqueles que nos trazem um pedido à mesa (ou a casa); na cancela que apenas se abre através de cartão contactless – se não se saltar sobre ela... –; na bófia que nos manda circular pois "aqui não há nada para ver"; na distinção que se compra e se faz questão de levar na lapela; ou no olhar desviado diante da incógnita que a outra carrega em si. 

Este processo não surgiu de repente. A domesticação e administração da vida instauram, há muito, a separação e a impotência como modo de vida, onde o medo se torna afeto estrutural. Um medo que não é apenas resposta a um perigo real – que existe e se tem intensificado –, mas também o reconhecimento tácito, embora difícil de nomear, da força que nos falta e do que tem ficado por construir. O medo não se manifesta apenas pelo receio de uma soqueira pintada com suásticas, mas sobretudo pelo reconhecimento de que parece estar tudo por fazer e desfazer.

O apelo à segurança – sobretudo a prometida pelo soberano – nasce do vazio gerado pelo próprio poder, e é nesse vazio que este se legitima. O medo é o afeto que permite a ligação do separado enquanto separado, criando um mundo inabitável.

A tarefa em falta consiste na construção de uma arte das distâncias: aquela que reconheça a presença como efetiva e as relações entre corpos como condição de realidade. Uma arte em que a violência existe como possibilidade sempre latente, mas onde não se cede nem à sua erupção fácil nem à recusa ingénua da sua existência.

Levantam-se indignações. Ouvem-se soluções.

Entre elas, surge o levantar de uma bandeira para enfrentar o fascismo. Um gesto que apresenta valor simbólico e uma coragem que se reconhece. No entanto, uma resposta ao perigo do fascismo não se fará com o hastear de todas as bandeiras que possamos considerar justas e defensáveis.

De nada nos vale invocar a liberdade, os direitos humanos – ou outras abstrações semelhantes – se a sua difusão assentar no reino de uma autoevidência que não contagia ninguém.

Ainda no âmbito das soluções: proibir o fascismo na constituição e apelar à atuação das autoridades é já uma derrota perante o monstro. Não mais do que o reconhecimento da nossa fraqueza.

A crise do posicionamento defensivo, pacificador e legalista não é só uma crise de força, mas da própria base em que esse posicionamento se sustenta. A tese you don't have any rights não é tanto uma provocação anarca, mas o reconhecimento de que os direitos – caso se opte por tal linguagem – não podem assentar em concessões que nos devolvam à nossa condição de sujeitos governáveis, reconhecidos meramente enquanto cidadãos.

Não se trata de estar nem com nem contra o poder, mas de ir para além deste. A prática a desenvolver ainda está por materializar…

A superação do atual estado de coisas não virá pela enésima evocação da democracia nem pelo desfile de grandes princípios. Ela começa pela recusa da separação entre corpos, mantida pela apatia e pela não-relação – com todas as implicações que isso traz.

O comunismo – ou o que se queira designar ao processo de destituição do atual estado de coisas – não é mais do que um vínculo intensificador de singularidades que se encontrem enquanto tais, e não a completa anulação de qualquer conflito. Recusar este encontro é aceitar a equivalência geral que leva à indiferença e ao apelo a que alguém a governe.

Se for necessário, tratar-se-á de um encontro para fazer a guerra, e não para a esconder debaixo do tapete com a ajuda de um qualquer agente da autoridade. Há encontros que não podem ter outro desfecho senão o conflito com quem deseja apagar a nossa possibilidade de existência – o que também implica cuidar da nossa potência.

Recusando o apelo ao Estado mas sem se afirmar que a única resposta ao medo seja o armamento ou a técnica de autodefesa. O que realmente nos permite enfrentar o medo é a experiência – eventualmente rara, mas concreta – de enfrentarmos o mundo juntas.

Uma experiência que se funda e torna contagiosa porque se inscreve em gestos concretos e partilhados. Uma experiência que não se baseia nem numa instituição nem em corpos hábeis e musculados, armados de acordo com o espírito dos tempos. Mas numa experiência que nasce de um juramento feito com quem luta connosco, ao nosso lado – não de ideais abstratos.

Esta sim é uma evidência: um murro dói de forma diversa se não tivermos sido previamente separadas, e a nossa resposta será certamente diferente com base nesse vínculo.

A dificuldade em criar um grupo de escuta e partilha com outras em nada difere da dificuldade de construir um grupo para nos defendermos diante de um facho. Engana-se quem pensa que uma é mais importante que a outra, mesmo reconhecendo a urgência da segunda.

Este vínculo não nasce de nenhuma unidade abstrata, frentista ou outra. O risco do apelo unificador passa por fundar um denominador comum que reduz as singularidades e os encontros. 

Algumas formas só se incendeiam em determinados ventos."