(...) pode ser a pergunta certa a fazer a alguns dos medos que nos atravessam, antes de se calcificarem em certezas.
É que o medo, tantas vezes, é justamente a forma que o não-saber tem de se manifestar. Dar a este medo a agência de nos responder antes de a ele nos impormos poderia ser o gesto revelador de um caminho que ainda não se pode ver. Nesse trilho escuro, aprendemos a confiar noutros sentidos, e a ter cuidado sobre as conclusões precipitadas. Este medo é a antecâmara da autoproteção e da autopreservação; tantas vezes sob a premissa de que aquilo que somos e sabemos é necessariamente delimitável.
Mais do que o domínio da luz que venha revelar os seus contornos, este medo pede uma espécie de curiosidade cautelosa perante o desconhecido e as suas sombras, os seus ruídos sem fonte à vista. Dar-lhes espaço para ressoar com uma certa reverência, na medida do possível, na quietude e no silêncio que nos impõem, antes de saber. É que este medo é real antes de descobrirmos a realidade do perigo; e o medo é uma emoção antecipatória, muito mais do que uma emoção reativa — ainda que todas as emoções, incluindo o medo, impliquem sempre uma experiência sentida enquanto reação (em-resposta a).
Mais do que a contraposição de uma coragem heróica, este medo exige a construção processual dessa curiosidade e dessa cautela, que são as suas "armas" de companhia. Curiosidade sem cautela pode levar ao movimento precoce que nos expõe ou põe em risco antes do tempo; cautela sem curiosidade pode levar à imobilização prolongada até que seja tarde demais. Pois todas as emoções têm o seu tempo de travessia e solicitam respeito pelo seu movimento, em todo o seu espectro.
Muito mais do que lutar contra elas, há que aprender a confiar nelas e no corpo que as veicula. É essa confiança que nutre a intuição, que não é mais do que a aprendizagem de uma sintonização permanentemente dupla e relacional: uma escuta do corpo atenta ao que o rodeia, no limiar entre o dentro e o fora. Uma automonitorização que nunca é fechada sobre si mesma.
O medo é uma emoção especialmente liminar, que nos encurrala no presente vivido enquanto preâmbulo; ao contrário da ansiedade, por exemplo, que nos retira do presente e nos posiciona adiantadas — e daí que elas se revezem tantas vezes, alimentando-se mutuamente.
Enquanto emoção liminar e antecipatória, o medo não nos encurrala apenas a nós no presente e ao presente — o medo traz, para o presente, outras coisas; aprendizagens cumulativas de situações passadas de perigo e insegurança; a lembrança das suas consequências reavivadas no nosso corpo. E assim o medo não nos pede apenas para confiarmos nele mas também para o desafiarmos... Sobretudo se se tratar deste medo do que não conhecemos, do que não sabemos, do que (ainda) não vemos.
E pode ser até que todo o medo — mesmo aquele que, de tão reconhecível, nos revela de antemão, com enorme precisão, a verdadeira realidade do perigo — contenha sempre uma dimensão incognoscível. O medo que sentimos pode bem ser o mesmo medo que, uma e outra vez, se fez sentir em momentos com um determinado desfecho semelhante. Mas na conjuntura sempre em mudança das nossas vidas, é impossível garantir a total constância do mesmo outcome.
Fora o tanto que não controlamos, aquilo que muda pode começar no modo como substituímos a certeza do medo pela pergunta que lhe dirigimos; no modo como ela nos encaminha a tactear antes de concluir e, assim, a desviar o curso da realidade e a descobrir a "utilidade" dos seus mistérios enquanto tal — a necessidade de (alguma) incerteza como condição desse movimento corajoso.
Correndo o risco de assinalar uma banalidade: a par de tudo isto, existe ainda um diluente infalível para o medo — atravessá-lo juntas.