06/07/2025

✰ o medo do fundo (uma partilha da J.)


Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.

Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.

Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.

Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.


um poema de Wislawa Szymborska 

em Instante (trad. Elzbieta Milewska e Sérgio Neves), Relógio d’Água, 2006.